Com crise cambial, desabastecimento chega a 46% em mercados argentinos
- Governo ameaça fechar lojas em ‘casos extremos’
BUENOS AIRES - O fantasma do desabastecimento voltou a pairar sobre a Argentina, em meio à delicada crise cambial que provocou a maior desvalorização sofrida pelo peso desde março de 2002. Em reunião com representantes de empresas de diversos setores, entre elas de alimentos e supermercados, o secretário de Comércio Interior, Augusto Costa, sucessor do polêmico Guillermo Moreno, admitiu que, em alguns supermercados, a escassez de produtos alcança 46%, ou quase metade do total. Para provar a denúncia, o secretário mostrou a foto de uma prateleira quase vazia de garrafas de Coca-Cola. A Casa Rosada fez duas exigências aos empresários locais: não repassar a desvalorização (que este mês seria de mais de 20%) aos preços e evitar a falta de produtos. E ameaçou fechar lojas, em “casos extremos”.
- O Estado tem várias ferramentas (para controlar o comércio), como multas pelo não cumprimento de acordos (o chamado plano de Preços Cuidados) e, em caso extremo, podemos chegar ao fechamento - declarou o chefe de gabinete, Jorge Capitanich.
Na véspera, o ministro da Economia, Axel Kicillof, acusara alguns comerciantes de “roubar e mentir”. Na visão do governo Kirchner, os reajustes de preços dos últimos dias, que em alguns casos chegaram a 30%, não têm justificativa. O diretor executivo da Anses (o INSS argentino), Diego Bossio, acusou nesta terça-feira as lojas de materiais de construção de terem “aumentado de forma indiscriminada os preços”, prejudicando programas habitacionais do governo Kirchner.
- Não vamos permitir que o sonho da casa própria seja prejudicado pela ação de especuladores - acusou Bossio.
Apesar da forte ofensiva oficial, os preços continuam sendo reajustados e produtos começam a faltar. De acordo com Sandra González, presidente da Associação de Defesa de Consumidores e Usuários, em muitos supermercados de Buenos Aires e da Grande Buenos Aires há escassez de laticínios, açúcar e produtos de limpeza, entre outros, o que foi confirmado pela reportagem de O GLOBO.
- O que estamos vivendo é pura especulação, os empresários dizem ‘sim’ para tudo ao governo nas reuniões e depois fazem o que querem. Quem paga é a sociedade - afirmou Sandra.
Está agendado um encontro do secretário de Comércio Interior com representantes de associações de defesa dos consumidores para amanhã, com o objetivo de obter mais informações sobre a situação do comércio em todo o país.
- O governo já percebeu o que está acontecendo, é uma vergonha. Ontem me disseram que um quilo de pêssego custava 50 pesos e hoje o mesmo quilo está sendo vendido a 65 pesos - disse Sandra.
A queda de braço pelos reajustes teria provocado disputas internas no governo, entre Kicillof e o presidente executivo da petrolífera YPF, Miguel Galuccio. Segundo informações publicadas pela imprensa local, Galuccio pretende aumentar o preço da gasolina, mas o ministro nega de forma taxativa esta possibilidade. Desde dezembro, as ações da YPF acumulam queda de 48%, e a empresa deve financiar com os pesos que arrecada no país as importações em dólar. É a mesma situação complicada que enfrentam muitos empresários locais. Galuccio teria pedido à presidente Cristina Kirchner que dê sinal verde ao aumento da gasolina, mas a chefe de Estado ainda não bateu o martelo.
Com a inflação cada vez mais alta, o mercado cambial se manteve relativamente estável, após as medidas anunciadas na segunda-feira passada por Capitanich. O dólar oficial, ainda controlado através de intervenções do Banco Central - cujas reservas caíram para cerca de US$ 28,8 bilhões (contra US$ 52 bilhões de 2011) - fechou em 8,015 pesos, e o paralelo ficou em 12,25 pesos. Esta terça-feira foi mais um dia de poucas operações, já que o sistema da Afip (a Receita local) ainda não está funcionando normalmente, principalmente no caso de operações em bancos privados.
O governo teme que os bancos estejam boicotando as medidas cambiais, e Capitanich os culpou pela baixa venda de dólares aos poupadores. O ministro garantiu que o sistema da Afip funcionou corretamente no primeiro dia da flexibilização cambial, em que foram vendidos apenas US$ 114 mil. Os bancos, por sua vez, argumentaram que ainda não tinham recebido a regulamentação para iniciar as operações, nem seus sistemas de informática estavam prontos para isso.
Ataque especulativo
A Casa Rosada continua insistindo na teoria de que o país foi vítima de um ataque especulativo semana passada. Segundo o chefe de gabinete, a questão dos “ataques especulativos de mercado” foi discutida pelas presidentes Cristina Kirchner e Dilma Rousseff, em encontro realizado em Cuba, no domingo.
- Não sejamos ingênuos, já vimos muitas vezes este filme ao longo da História - disse Capitanich, reforçando a teoria já defendida publicamente pela própria presidente, que na última segunda-feira acusou os bancos de estarem por trás destes ataques, e pelo ministro da Economia.- Fazem ataques especulativos para, principalmente, comprar ativos desvalorizados em países como a Argentina.
No Brasil, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, reconheceu que a Argentina passa por uma crise cambial aguda. Segundo ele, o país vizinho também está sofrendo os reflexos da situação na China e nos Estados Unidos.