quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Roberto DaMatta: "As ironias da sorte"

Num dos talk-shows de maior sucesso da televisão americana, seu apresentador estrela Johnny Carson fez, em 1973, uma entrevista memorável com Frank Sinatra. Após receber o cantor, Carson perguntou se Sinatra ouvia-se a si mesmo quando queria criar um clima romântico com uma namorada. A pergunta embaraçou Sinatra, como provavelmente encabularia qualquer grande criador, mesmo os mais narcisistas. 
Será que a sexualidade de Freud se harmonizava com suas teorias? Será que Mozart, Schubert e Tchaikovski se ouviam tão empolgados como ocorre conosco? Shakespeare gostava de suas peças, Hemingway releu com admiração O Velho e o Mar? E Machado de Assis sorria, autocontemplando-se, quando voltava às suas ironias mais radicais, as que sem dúvida remetiam à sua identidade?
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Quando perco o sono e minha fantasia me transforma num ganhador de loterias, fazendo o ideal coincidir com o real, eu durmo o sono dos justos. Mas e se eu fosse premiado? A possibilidade produz uma certa agonia... Ficar rico por um “golpe de sorte” traz felicidade ou desgraça, como temos testemunhado. Sucesso – êxito – é literalmente saída. Mas para onde a porta pode se abrir? Dinheiro ganho de modo repentino se associa mais ao Diabo do que ao bom Deus. O mal-estar brasileiro mostra o que ocorre num sistema marcado por privilégios legalizados ao lado de uma absurda conjugação de liberalismo e familismo. Uma crise semelhante acontece com o narcisista radical – ou de quem controla tanto o seu prisioneiro que com ele fica na cela, aprisionando-se a si mesmo. A insolvência de um sistema que muda para não mudar tem a mesma estrutura de um cantor que só admira seu próprio canto.
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No imenso mar de ironias que assola o mundo e o Brasil, um assombroso prêmio de R$ 120 milhões saiu para assessores da presidência do PT por meio de um jogo coerentemente coletivo (um bolão). O tom do noticiário era de paradoxo: como defensores dos pobres ficam ricos? A visão dos ricos em toda época e lugar é permeada por inveja e ressentimento. 
O PT é o partido dos trabalhadores. Dos castigados e oprimidos pelo trabalho o que pode ser exagerado, mas tem sua razão num sistema de matriz escravocrata, responsável pelo ideal brasileiro de não trabalhar, mas de “se arrumar” por meio de um emprego público com aposentadoria garantida e hereditária. Uma “boca” cuja obrigação principal é a nobre arte de coçar o saco.
É uma ironia dos deuses contemplar filiados do PT com tanto dinheiro, mas não o suficiente para mudanças totais. Primeiro, porque o prêmio foi ganho por 46 pessoas, reduzindo centenas de milhões em uns “míseros” 2,5 milhões para cada “pobre” sortudo. Houve quem reclamasse de ter ficado fora do bolão; houve quem mencionasse que 2 milhões é pouco para funcionários cujos salários variam de R$ 3,6 a R$ 20 mil. Houve também a palavra sábia da presidência da legenda, abstendo os premiados do dízimo partidário.
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Como um hóspede não convidado, o acaso produziu “ricos” num partido devotado aos “pobres”. Sinatra ouvia seus discos para criar um clima romântico? Você e eu faríamos filantropia ou caridade caso virássemos ricos? 
A teoria é fácil. O complicado é quando há um inesperado encontro entre o ideal e o real. Neste caso, como dizia Raymond Aron, é preciso um “pessimismo ativo”: ter fé sem ilusão diante dos imprevistos. Sobretudo num país tão afeito a fazer para desfazer, como o Brasil...

O Estado de São Paulo