quinta-feira, 31 de outubro de 2019

"Traições, deserções, assassinatos: a louca política libanesa", por Vilma Gryzinski

Poucas coisas, das que podem ser feitas em público, são tão empolgantes quanto os protestos no Líbano que envolvem religiões e correntes diferentes.
A sensação de que o país pode se unir e superar as eternas barreiras sectárias causa algo próximo da restauração da crença nos seres humanos.
Sem contar a graça das jovens cristãs maronitas, de camisetas bem curtinhas, jeans de cintura bem baixa e maquiagem bem exuberante.
Gucci, Dolce e Prada se misturam com os véus negros das meninas muçulmanas sunitas que agitam a bandeira do cedro e não ficam atrás, de jeito nenhum, em matéria de maquiagem.
Na onda atual de protestos, houve manifestações até nas cidades do sul, onde reina o Hezbollah.
A coragem de cidadãos xiitas que protestaram contra a corrupção e a inépcia administrativa foi espantoso.
Houve também várias cenas virais. A mais fofa mostra um grupo de saradões que gritam slogans em volta de um carro.
A mãe pede que maneirem, pois seu filhinho está dormindo.
O que fazem os bravos defensores da Thawra, revolução ou derrubada do regime?
Começam a cantar Baby Shark, a hipnótica cantiga da internet para embalar bebês e enlouquecer pais.
Também dançam, batem palmas e dão risada, acenando para o menininho de expressão bem séria.
Imaginem em que outro país árabe do Oriente Médio, onde protestos sempre são acompanhados de listas de mortos e abusos, muitas vezes praticados dos dois lados, poderia acontecer uma cena assim.
A “revolução do WhatsApp” já conseguiu mais do que cancelar a taxa que agravaria chamadas grátis por aplicativos – favorecendo a empresa de telefonia tradicional que tem, adivinhem só, altos representantes no governo.
O primeiro-ministro Saad Hariri, depois de propor várias medidas de moralização e reforma, fora tirar a maldita taxa do WhatsApp, simplesmente renunciou. Com ele, foi todo o gabinete, embora continue interinamente.
Uma vitória como não se viu no surto atual de protestos (só o presidente do Equador, Lenín Moreno, além de arregar no aumento dos combustíveis, teve que “recuar” de Quito para Guayaquil, mas ninguém nem se lembra mais do episódio equatoriano).
Mas antes mesmo a renúncia, o Hezbollah, a principal força político-militar do país, já tinha declarado que essa história de protestos pegava mal.
Para reforçar, colocou seu exército de barbudinhos vestidos de preto na rua. Eles tocaram o terror: arrancaram barreiras, queimaram barracas e desceram o braço em manifestantes.
Manda quem pode.
Uma retrospectiva rápida dos principais líderes políticos envolvidos mostra como bater, matar, trair e trocar de aliados como quem muda de camisa são as constantes mais comuns da política libanesa.

Herdeiro enrolado

Não é fácil a vida de Saad Hariri, apesar da fortuna de 1,5 bilhão de dólares. Sempre exposto a ser assassinado como aconteceu com seu pai, um risco profissional no Líbano, ele vive mais em Paris do que em Beirute.
Ou em refúgios para bilionários, como o das Ilhas Seicheles, onde conheceu a modelo sul-africana Candice Van der Merwe, uma loira de para o trânsito em vários continentes.
Entre dinheiro e presentes, ele deu a ela 16 milhões de dólares. Atenção: dinheiro próprio, o que não constitui crime.
O primeiro-ministro não teve opção a não ser assumir a herança política do pai – fora a fortuna – quando Rafik Hariri foi assassinado, em 2005, por um terrorista suicida num carro-bomba.
Baseado na Arábia Saudita e íntimo da família real, ele tinha um esquema de segurança parecido com o dos presidentes americanos.
O assassinato de Rafik Hariri, ex-primeiro-ministro, reconstrutor de Beirute devastada pela guerra civil e principal líder dos muçulmanos, desencadeou uma onda de protestos parecida com a atual.
Como todo mundo sabia quais as mãos que haviam guiado o atentado – Hezbollah e Síria -, os protestos uniram cristãos, sunitas e drusos.
Espantosamente, conseguiram forçar a retirada das tropas da Síria que continuam no país mesmo depois de muitos anos do fim da guerra civil.
Mas o mundo gira, inimizades letais viram alianças por interesse e nada no Líbano continua a ser o que era antes.
O Hezbollah se tornou a força política dominante e Saad Hariri só pode ser primeiro-ministro – um cargo obrigatoriamente reservado a um sunita – depois de, digamos, um entendimento. A agonia durou nove meses.
A aliança entre os frenemies irritou os patronos sauditas. Saad Hariri foi convidado para uma conversa, desembarcou em Riad e foi direto para Alá sabe o quê.
Renunciou numa tragicômica transmissão gravada por seus, digamos, anfitriões. A reação foi tão forte que o príncipe maluquinho, Mohammad Bin Salman, liberou Hariri.
Dessa vez, antes de renunciar ele conversou com a liderança do Hezbollah. Dizem que foi pela primeira vez em dois anos.
Hassan Nasrallah, o poderoso chefão, não quer desmanchar o governo. E muito menos deixar que os protestos continuem.
Como sempre, o destino de Saad Hariri pode ser escrito por outros.

Presidente vira-casaca

Como general do Exército, líder cristão e presidente autodesignado, Michel Aoun, combateu as forças sírias que mandavam no Líbano e seus aliados do Hezbollah de 1988 a 1990.
A situação era tão perigosa que ele não podia sair do bunker no porão do palácio presidencial, em Baabda.
Perdeu e foi para o exílio na França.
Antes mesmo de voltar, em 2005, já havia feito um, digamos, entendimento com o Hezbollah.
Muitos cristãos maronitas ficaram em estado de choque, outros entenderam as realidades da vida e a opção por ficar do lado do mais forte, uma alternativa existencial.
O Movimento Patriótico Livre, também chamado de partido aounista, assinou um memorando de entendimento com o Hezbollah. Aoun também apoiou firmemente o regime de Bashar Assad, o mesmo com quem havia travado a guerra perdida, quando eclodiu o conflito na Síria.
Assim, ficou aberto o caminho para Michel Aoun ser eleito presidente em 2016.
Mesmo antes disso, ele colocou o genro e possível sucessor, Gebran Bassil, em ministérios importantes: Telecomunicações, Energia e Relações Exteriores.
Aparentemente, não existe nada que Gebran Bassil não consiga fazer. Exceto, talvez, algum trabalho que preste.
Bassil virou o maior alvo dos protestos por causa do imposto – cancelado – sobre chamadas por aplicativo.
A musiquinha mais cantada nas manifestações é “Hala, Hala, Hala hoo, Gebran Bassil…”. Segue-se uma expressão muito mais pesada do que a usada por brasileiros em estádios de futebol quando presidentes vão assistir o jogo.

Chefe de milícia

O primeiro a cair fora do governo atual foi Samir Geagea, levando os quatro ministros a que tinha direito.
A história de Geagea é tão inacreditável que nem série da Netflix daria conta.
Começando pelo mais recente. Geagea herdou as Forças Libanesas, uma milícia cristã, e parte dos inconformados com as alianças de Michel Aoun.
Entre os cristãos maronitas, sempre optou pelos caminhos mais radicais. Era, por exemplo, da Kataeb, a Falange, o grupo cristão que enfrentou palestinos e aliados, elegeu um presidente assassinado antes de tomar posse e promoveu a matança em Sabra e Chatila depois que Israel interferiu na guerra civil.
Mas sua grande briga, como é típico, era com outros líderes cristãos. Na etapa final do primeiro período de Aoun, entrou em choque com ele. Armado, evidentemente.
Também foram debitados na sua conta os atentados que mataram Dany Chamoun, filho de ex-presidente, explodido com a mulher e dois filhos em 1990; e o ex-primeiro-ministro Rashid Karami.
Para ficar só nos mais importantes.
Como não fez um acordo com os sírios, Samy Geagea foi condenado à morte, com pena comutada para prisão perpétua.
Passou onze anos preso numa cela no piso mais fundo do porão do Ministério da Defesa.
Foi anistiado em 2005. Pediu perdão pelos “erros cometidos quando cumpríamos nosso dever patriótico durante as guerras civis”. Escapou dos tiros de fuzil de um franco-atirador em 2012 – do Hezbollah, concordaram todos.
Terminou aliando-se e apoiando a candidatura presidencial de seu ex-inimigo Michel Aoun.

O lorde do terror

Hassan Nasrallah sabe que cada dia em que continua vivo, embora no esquema de mudar de esconderijo constantemente, é porque Israel não executou sua sentença. Ainda.
Assinada, já está. Em circunstâncias normais, num país normal, seria um líder político impressionante.
Como vive em extrema anomalia, toda a sua capacidade de liderança, visão estratégica, arregimentação, organização, planejamento político e comando militar é usada para o mal.
Dominar o Líbano, ampliar o arco xiita e, claro, destruir Israel, são seus objetivos.
O primeiro e o segundo ele já alcançou.
O chefe do Hezbollah tornou-se o dirigente mais importante do Líbano, com capacidade de cooptar políticos de todas as tendências, como resumido acima, e de fornecer a carne de canhão para a intervenção iraniana que salvou o regime de Bashar Assad na Síria.
Não deve ter sido fácil para o ego monumental do grão-mestre do terror ouvir manifestantes cantando slogans irônicos sobre ele.
“Todos eles significa todos eles”, era uma das palavras de ordem, indicando que Nasrallah não estava fora da lista de alvos do ódio popular.
E deve ter sido intragável ver xiitas, a cuja adoração ele está acostumado, apoiar os protestos contra a corrupção nas altas esferas.
Nasrallah se considera um descendente do projeta Maomé, usa turbante preto e não rejeita o tratamento de “saíd”. Tem um canal inteiro de televisão para fazer discursos furiosos, promovendo a violência e a destruição de todos que considera inimigos.
Mandou sua tropa de choque dar um “gostinho” do que pode acontecer aos manifestantes que ousaram colocar o Hezbollah na lista de malfeitores públicos.
A situação na Síria voltou a esquentar, com choques diretos entre forças do regime e da Turquia.
Nenhum dos líderes dos dois partidos mais votados consegue formar um governo em Israel.
O Iraque está passando também por uma onda de manifestações bizarras (sunitas contra xiitas, xiitas contra xiitas), com mais de 200 mortos.
Para os padrões de instabilidade do Oriente Médio, até que a coisa não é tão séria assim no Líbano.
Mas pensem nos personagens acima e imaginem o que pode vir a acontecer.

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