O escândalo do Panama Papers tomou o noticiário em 2016 quando tornaram-se públicos mais de 11 milhões de registros de contas bancárias em paraísos fiscais. O caso atingiu políticos, grandes empresas e celebridades — chegando até à Odebrecht e à Operação Lava Jato. De tão absurda e complexa, a história precisou de pouca ficção, mas muito didatismo, para ser transformada em filme pelo diretor Steven Soderbergh em A Lavanderia, disponível na Netflix. A produção tragicômica é destrinchada pela dupla central da questão: os advogados Jurgen Mossack (Gary Oldman) e Ramón Fonseca (Antonio Banderas), donos do escritório de advocacia panamenho Mossack Fonseca, responsável por comandar as empresas offshore. Os verdadeiros Mossack e Fonseca, aliás, tentaram processar a Netflix por difamação e infringimento de direitos autorais, mas a Justiça americana foi favorável à plataforma de streaming.
Para além de cifras robustas, leis duvidosas e casos de corrupção que respingam no Brasil, é na figura de Ellen Martin (Meryl Streep, em sua estreia no mundo do streaming) que o escândalo ganha dimensão humana. Confira abaixo o que é verdade e o que é ficção no longa:
Ellen Martin existiu?
Quase um Sherlock Holmes da terceira idade, Ellen (Meryl Streep) é o fio condutor da trama e mostra que o esquema de fraudes afetou também pessoas comuns. A protagonista perde o marido em um acidente de barco em Nova York. Quando descobre que a seguradora que pagaria as indenizações dos familiares afetados é uma empresa fantasma, ela passa a seguir rastros deixados pelos advogados do Panamá. Ellen é fruto da ficção, mas o acidente de barco não. A tragédia aconteceu em 2 de outubro de 2005. Na ocasião, o barco Ethan Allen, operado pela empresa Shoreline Cruises, afundou em um lago no estado de Nova York. Cerca de 47 pessoas caíram na água, das quais vinte não sobreviveram. Tal como retratado no longa, as famílias das vítimas não receberam nenhum tipo de indenização, já que a seguradora responsável, na verdade, era uma empresa de fachada.
Lava Jato no Panamá
Depois de tantas falcatruas, Jurgen Mossack e Ramón Fonseca são presos quando acabam na mira da Lava Jato — sim, a investigação dos esquemas de corrupção no Brasil. “O presidente Varela (Juan Carlos Varela, ex-presidente do Panamá) acredita que você saiba sobre a Odebrecht, uma empreiteira brasileira que pagou mais de 3 bilhões de dólares em suborno a funcionários públicos em troca de contratos em uma dúzia de países”, resume o policial enquanto algema os advogados. É verdade que a Odebrecht participou ativamente dos esquemas, assim como é verdade que há um setor dedicado exclusivamente ao pagamento de propinas, cuja quantia chegou aos 3 bilhões entre 2006 e 2014. Alvo da Operação Lava Jato no Brasil desde 2014, o grupo Odebrecht assumiu ter participado de um esquema de corrupção e propinas a políticos de doze países, incluindo o Panamá, onde foram destinados cerca de 59 milhões de dólares de 2010 a 2014.
Antonio Banderas reproduz o absurdo momento em que Fonseca esbraveja para a imprensa sobre as doações vindas da Odebrecht e aceitas pelo presidente Varela: e que se ele estivesse mentindo, que caísse um raio em sua cabeça. Como mostra o filme, a dupla ficou detida por apenas três meses e acabou liberada pela Justiça panamenha com o pagamento de uma fiança de 500 000 dólares cada um.
Os mestres da lavanderia
Embora não tenha sido alterada, parte da história de vida dos dois advogados foi omitida. O panamenho Ramón Fonseca realmente tentou ser padre durante a juventude, mas se frustrou com a decisão. “Não salvei ninguém nem fiz nenhuma mudança. Mais maduro, decidi me dedicar à minha profissão, formar uma família, me casar e levar uma vida normal. À medida que uma pessoa envelhece fica mais materialista”, disse em 2008, segundo o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos. Depois disso, concentrou seus estudos em Direito e Ciências Políticas e, confirmando o que foi dito no filme, realmente trabalhou na sede da Organização das Nações Unidas (ONU) em Genebra, na Suíça, por seis anos. Fonseca também é autor de vários livros e chegou a ser ministro-conselheiro de Juan Carlos Varela, além de presidente do Partido Panamenhista. Seu nome foi vinculado ao esquema de corrupção na Petrobras e ele foi investigado pela Operação Lava Jato, o que o obrigou a deixar seu cargo político em 2016.
Já o personagem Jurgen Mossack menciona apenas um vago “período de dificuldades” enfrentado por sua família após a II Guerra Mundial. Na verdade, seu pai, Erhard Mossack, foi um membro do Partido Nazista e lutou com a Schutzstaffel de Hitler. Em 1961, a família Mossack se mudou para o Panamá, onde o patriarca se ofereceu a CIA para espionar as atividades comunistas em Cuba. O Serviço Federal de Inteligência da Alemanha confirmou ter registros sobre o pai de Jurgen Mossack, mas optou por não revelá-los por questões de segurança. O advogado obteve seu diploma em 1973 e, após uma temporada em Londres, abriu seu escritório de advocacia em 1977. Nove anos depois, se juntou com Fonseca para criar a Mossack Fonseca, que se tornaria conhecida no mundo todo — e não por um viés positivo.
Caso Bo Xilai
Um dos momentos mais tensos da produção está ligado ao escândalo político chinês envolvendo Bo Xilai (interpretado por Jesse Wang), um dos líderes do Partido Comunista do país envolvido em corrupção e no assassinato do empresário inglês Neil Heywood por envenenamento em 2012. No filme, Heywood se chama Maywood (Matthias Schoenaerts). Ele viaja à China com a intenção de ampliar seus negócios ilegais. O empresário entra em contato com Gu Kailai (Rosalind Chao) e ameaça expor o esquema de fraudes em que ela e seu marido, Bo Xilai, estão envolvidos. A visita acaba quando a mulher coloca algumas gramas de cianeto no uísque do inglês. Depois de cometer o assassinato, o casal é detido em um evento de militância. Na vida real, os chineses de fato foram presos e Gu Kailai admitiu responsabilidade pela morte, dizendo que havia uma disputa por “interesses econômicos”: motivo que ficou sem explicação na época — até o vazamento do Panama Papers em 2016. Segundo os registros, Bo Xilai utilizou uma empresa offshore com sede nas Ilhas Virgens Britânicas para comprar uma mansão no sul da França — fato também mencionado no longa. Ela foi sentenciada à morte, mas teve sua pena posteriormente convertida para prisão perpétua. Já Bo foi considerado culpado por corrupção, expulso do Partido, teve seus bens confiscados e foi condenado à prisão perpétua.
Milionário africano
Entre as pequenas histórias que costuram o enredo, uma ganha destaque, seja por sua complexidade ou pelo tempo que ocupa na narrativa: a do milionário africano Charles (Nonso Anozie), que trai a esposa (Nikki Amuka-Bird) com Astrid (Miracle Washington), a colega de quarto de sua filha, Simone (Jessica Allain). Para comprar o silêncio da filha, o homem a presenteia com uma empresa chamada Whitecloud Enterprises, cujo valor gira em torno dos 20 milhões de dólares. No momento de assinar os papéis, porém, a menina descobre que foi vítima de uma armação do pai e a companhia vale, na verdade, apenas 37 dólares. O drama prende, mas Charles e sua família (nos moldes e nomes apresentados pelo filme) não existem.
Ana Carolina Avólio, Veja