Se aceita um conselho, lembre-se que o medo é mau conselheiro.
Acaba de ser publicado nos Estados Unidos um estudo muito interessante com democratas e republicanos. Pesquisadores da Universidade de Duke convidaram simpatizantes dos dois partidos a seguir perfis no Twitter com inclinações opostas às suas. Republicanos passaram a seguir um bot (perfil automatizado que replica mensagens como se fosse humano) democrata, e vice-versa. Ao final de um mês reavaliaram as posições políticas dos voluntários, apenas para descobrir que elas haviam se radicalizado.
Conservadores expostos a mensagens liberais se tornaram mais conservadores. Os liberais apresentaram a tendência oposta, mas com menos intensidade.
Eu não procurei esse estudo, ele surgiu para mim exatamente numa rede social. Dê uma olhada nas suas timelines e verá que não se fala de outra coisa nesse país. Mas notei uma mudança significativa nos últimos dias.
Talvez fosse já uma tendência, mas ela me parece muito mais clara após a definição do segundo turno. Os dois lados da disputa parecem ter concentrado todas as suas forças no apelo ao medo. Essa emoção, afinal, é a mais poderosa mobilizadora do ser humano. O medo deixa o amor no chinelo quando se trata de nos convencer a fazer alguma coisa.
A se acreditar nas mensagens que eu lia, não havia saída: se o Bolsonaro ganhasse o futuro nos reservaria a volta da ditadura militar e o fim da democracia. Se o Haddad vencesse o PT instituiria o projeto bolivariano e uma ditadura de esquerda, matando a democracia. Como eu não sou partidário de nenhum dos contendores e tento observar os dois lados, gastando energia mental para considerar os argumentos de parte a parte (pode me xingar de isentão, se quiser), deu-se comigo o contrário dos voluntários americanos. Eu não fui mais para um lado ou para outro, sentindo-me progressivamente espremido num centro cada vez mais estreito – e vazio.
O apelo ao medo é eficaz justamente porque reduz nossa capacidade de raciocínio. Sim, não é que seu cunhado seja burro ou que falte estudo para sua prima. Talvez eles estejam apenas assustados, acreditando nos cenários mais sombrios pintados por um dos lados, incapazes de raciocinar criticamente sobre as mensagens que recebem. E quanto mais medo sentem, menos refletem e mais certeza têm. Fenômeno que, desnecessário dizer, ocorre dos dois lados. Ambos têm certeza absoluta da desgraça que se abaterá inevitavelmente sobre o país caso seu candidato seja derrotado.
Não é de hoje que o medo é arma política, sendo o Trump e o Brexit apenas seus trunfos mais recentes. No entanto, acredito que sua ascensão nesse segundo turno brasileiro se deva à enorme rejeição de ambos os candidatos.
Dá a impressão que eles bateram no teto em sua capacidade de atrair simpatizantes no fim do primeiro turno. Agora que não conseguem mais convencer o eleitor de que são boas opções parecem ter desistido de vez de vender suas qualidades, centrando forças em apontar o outro como uma ameça na esperança de turvar raciocínios e atrair votos.
E antes que você compartilhe esse artigo com algum amigo ou parente para tentar acalmá-lo, já adianto que não vai ajudar. Uma vez que o sujeito embarca nesse discurso do terror, textos assim são imediatamente desqualificados como vindo de alguém cujos olhos não foram abertos pela ameaça real e iminente representada por Bolsonaro ou pelo PT.
Ok, talvez meus olhos não tenham sido abertos. Mas pode bem ser o contrário – talvez eles ainda não tenham é sido fechados – pelo terrorismo, pelo partidarismo cego – e eu ainda consiga ver que o Brasil é maior do que isso, que nossa democracia é jovem mas resistente, que nosso povo não é letrado mas terá força para rejeitar projetos ditatoriais. Pode ser que eu esteja errado. Mas não custa torcer a favor. E depois de torcer, trabalhar para que seja verdade.
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Leitura mental
Se a melhor maneira de enfrentar os medos é encará-los de frente, esses dois títulos recentes da original editora DarkSide Books pode ajudar a lidar com um dos maiores temores da humanidade – a morte.
Em Confissões do crematório – Lições para toda vida, a jovem agente funerária Caitlin Doughty compartilha as experiências inusitadas de quem começou a trabalhar com mortos aos vinte e três anos.
Desde sempre fascinada pelo tema, Doughty é praticamente uma ativista do tema: além de ter um canal no Youtube fundou The Order of the Good Death, uma organização para aceitação da morte.
O bom humor com que trata a “indesejada das gentes” ajuda a pensar sobre esse fim inevitável – talvez a melhor maneira de valorizar a vida.
Já em O segredo dos corpos o patologista forense Vicent Di Maio se uniu ao escritor Ron Franscell para juntos relatarem os casos em que o exame dos mortos foi útil para desvendar crimes famosos.
Os cadáveres falam muito, mas revelam os segredos apenas para quem sabe os ouvir.
Especialista nesse idioma, Di Maio soube traduzi-los para ajudar a justiça.
Agora, com Frascell, o traduz novamente, mas para o leitor comum, que tem mais uma oportunidade de olhar a morte nos olhos – apenas para lembrar que ainda está vivo.
Daniel Martins de Barros é psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (IPq-HC), onde atua como coordenador médico do Núcleo de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica (Nufor). Doutor em Ciências e bacharel em Filosofia, ambos pela Universidade de São Paulo (USP
O Estado de São Paulo