Antevéspera da eleição presidencial de 2006. O prenúncio de uma vitória do então candidato à reeleição Luiz Inácio Lula da Silva (PT), já no primeiro turno da disputa, não era suficiente para acalmar os ânimos do partido. Uma clara tensão pairava nos semblantes petistas.
Isso porque, a apenas duas semanas do primeiro turno, dois homens ligados à sigla haviam sido presos em um hotel em São Paulo com R$ 1,7 milhão em dinheiro vivo, entre reais e dólares. Era o início de um escândalo nebuloso, mal explicado, que despertou a ira de petistas, mas cujo enredo e personagens só seriam revelados 11 anos depois, na esteira da Lava Jato.
As informações disponíveis até aquele momento eram que o dinheiro, apreendido com dois desconhecidos —Valdebran Padilha e Gedimar Passos— seria usado para a compra de um dossiê contra o então candidato do PSDB ao governo de SP, José Serra, que liderava as pesquisas. O dossiê se revelou fajuto depois.
À época, Lula, tentando diminuir a importância do episódio, disse que aquilo era obra de “um bando de aloprados”, expressão pela qual o caso é lembrado até hoje.
Carregando o tradicional bloquinho de anotações da Folha e um gravador de fita cassete, deixei a Redação, por volta das 8h30, rumo à sede da PF, na Lapa, em São Paulo. Martelava questões ainda obscuras: de onde vinha o dinheiro e de quem partiu a ideia de comprar um dossiê às vésperas da eleição?
Tinha uma preocupação imediata: conseguir as fotos dos R$ 1,7 milhão apreendido.
Enquanto perambulava pelo saguão escuro e ainda vazio da superintendência paulista da PF, recebi uma ligação do então delegado Edmilson Pereira Bruno. O policial, até então desconhecido, foi o responsável pela prisão dos petistas e pela apreensão do dinheiro num final de semana em que estava de plantão.
Acelerado, sem dar pausa entre uma frase e outra, Bruno disse que uma operação abafa estava em andamento, que ele ia ser afastado do caso e que iriam questionar até mesmo a veracidade da apreensão do dinheiro. Dizia-se indignado e queria conversar fora da sede da PF, na lateral do prédio. Chamou outros três repórteres.
Às 10h30 todos estavam no local indicado. Bruno segurava um envelope com o CD. Eram as fotos dos reais e dólares apreendidos, cuja divulgação havia sido proibida pelo comando da Polícia Federal sob o argumento de que isso poderia interferir no resultado da eleição.
Entregou as imagens aos jornalistas com o compromisso de não ter sua identidade revelada. Agitado e confuso, dizia que, para se proteger, iria mentir, dizer que o CD com as imagens havia sido roubado. Afirmava estar dividido entre o medo de ser punido pelos superiores e a raiva de ver o caso abafado. “Eu quero que o povo todo veja”, afirmou aos repórteres.
Na sequência, o delegado entregou cópia do material para outros três jornalistas que faziam plantão em frente ao prédio da PF. Lá dentro, um depoimento importante acontecia. A polícia ouvia Hamilton Lacerda, então coordenador de campanha de Aloizio Mercadante (PT) para o governo paulista, que havia sido apontado como o homem que transportou o dinheiro até o hotel —anos depois, o petista foi absolvido pela Justiça.
Com o CD em mãos, voltei rápido para a Redação. No caminho, avisei a chefia sobre o ocorrido. O CD foi aberto em um computador da Editoria de Fotografia. Logo, 23 fotos coloridas com pilhas de reais e de dólares surgiram na tela do computador.
Enquanto analisávamos em silêncio as imagens, chegou a informação de que o PT havia recorrido ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e ao TRE (Tribunal Regional Eleitoral) paulista para impedir a divulgação das imagens sob o argumento de que o “vazamento ilegal” teria ocorrido por meio de pagamento —acusação rejeitada no mesmo dia pelos magistrados.
De qualquer forma, já era tarde. As fotos já estavam na internet.
Enquanto o partido questionava a veracidade das imagens, a PF divulgava um comunicado confirmando que as fotos de fato eram do inquérito.
Na Redação, o clima era de gravidade. Discutiu-se se as fotos seriam publicadas, se iriam para a Primeira Página e se seria mantido o off-the-record, direito de toda fonte de permanecer no anonimato. Se, por um lado, recebi as fotos sob a condição de não revelar o nome do policial, por outro, o próprio delegado Bruno já havia se exposto para pelo menos sete jornalistas.
Garantir o sigilo da fonte sempre foi uma coisa indiscutível, uma das primeiras lições quando entrei no jornal em 1998. E foi isso o que defendi naquele dia.
Por fim, decidiu-se pela publicação da imagem, já na Primeira Página, pois prevaleceu o entendimento de que as fotos tinham evidente interesse público. Quanto à identidade de Bruno, a Folha baseou-se no artigo quinto da Constituição, que prevê o direito ao sigilo. “É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.”
A exibição das imagens, às vésperas da eleição, provocou uma onda de protestos entre os petistas, que acusavam a imprensa de agir de forma orquestrada para favorecer a candidatura do tucano Geraldo Alckmin à Presidência. Outros diziam entender a importância das imagens, mas defendiam que a publicação ocorresse após o primeiro turno, para não influenciar na disputa.
“Perdigueiros da informação”, “jagunços” e “escravos” foram alguns dos adjetivos usados para criticar a publicação das imagens e, principalmente, o fato de a identidade do delegado não ter sido revelada na primeira reportagem por nenhum dos repórteres —o nome de Bruno só foi aberto no dia seguinte à publicação, depois que o próprio policial assumiu a autoria dos vazamentos.
Àquela altura, com os ânimos acirrados pela disputa eleitoral, era bem claro que pouco importava de quem era o dinheiro, quem havia encomendado o dossiê e sob as ordens de quem. Blogs e comunidades do Orkut —rede social de uma época em que o Facebook era um ilustre desconhecido —repercutiam febrilmente as imagens.
A eleição acabou se decidindo no segundo turno.
Onze anos depois, quando o caso já parecia sepultado e com todos os personagens inocentados pela Justiça, um ex-executivo da Odebrecht retomou o assunto durante uma delação premiada.
Luiz Eduardo da Rocha Soares, responsável pelas contas secretas da empreiteira, afirmou aos delegados que o dinheiro apreendido no escândalo dos aloprados saiu dos cofres da Odebrecht e da cervejaria Itaipava, no mesmo esquema que bancou o caixa dois de diversas campanhas eleitorais, de diferentes siglas.
Segundo Soares, no dia seguinte à apreensão do dinheiro, ele foi chamado para uma reunião no comitê do PT, em São Paulo.
Afirmou que estavam todos “em pânico” pois um dos maços de dólares tinha um invólucro com o nome de uma distribuidora de bebidas ligada à Itaipava.
O medo de serem descobertos, disse o ex-executivo, foi se dissipando à medida que as investigações não avançavam e as discussões perdiam o foco. Em 2017, quando falou durante uma oitiva da Lava Jato sobre o dinheiro apreendido no caso, era só mais um detalhe numa enxurrada de denúncias contra diferentes partidos e candidatos.
Os aloprados já eram história.
A ELEIÇÃO DE 2006
Datas: 1º e 29.out (1º e 2º turnos)
Principais candidatos
Lula (PT) 48,6%
Geraldo Alckmin (PSDB) 41,6%
Heloísa Helena (PSOL) 6,8%
Lula (PT) 48,6%
Geraldo Alckmin (PSDB) 41,6%
Heloísa Helena (PSOL) 6,8%
Segundo turno
Lula: 60,8%
Alckmin: 39,1%
Lula: 60,8%
Alckmin: 39,1%
Slogan do vencedor
“Deixa o homem trabalhar”
“Deixa o homem trabalhar”
População à época
183 milhões
183 milhões
Crescimento do PIB
3,7%
3,7%
Inflação do ano
3,1%
3,1%
O que tocava no rádio
Desenho de Deus (Armandinho)
Me Namora (Edu Ribeiro & Banda Cativeiro)
O Sol (Jota Quest)
Ela Só Pensa em Beijar (MC Leozinho)
Ela Vai Voltar (Charlie Brown Jr.)
Desenho de Deus (Armandinho)
Me Namora (Edu Ribeiro & Banda Cativeiro)
O Sol (Jota Quest)
Ela Só Pensa em Beijar (MC Leozinho)
Ela Vai Voltar (Charlie Brown Jr.)
O que o Brasil via na TV
Big Brother Brasil 6 (Globo)
“Belíssima” (Globo)
“Sinhá Moça (Globo)
“Ídolos” (SBT)
“A Fila Anda” (MTV Brasil)
Big Brother Brasil 6 (Globo)
“Belíssima” (Globo)
“Sinhá Moça (Globo)
“Ídolos” (SBT)
“A Fila Anda” (MTV Brasil)
Do que se falava
Queda de avião da Gol mata 154 pessoas
Morre o humorista Bussunda
Brasil é eliminado na Copa da Alemanha nas quartas de final
PCC organiza ataques em São Paulo
Queda de avião da Gol mata 154 pessoas
Morre o humorista Bussunda
Brasil é eliminado na Copa da Alemanha nas quartas de final
PCC organiza ataques em São Paulo
Campeãs dos desfiles das escolas de samba
Rio: Vila Isabel (“Soy loco por ti América: A Vila canta a Latinidade”)
São Paulo Império de Casa Verde (“Do boi místico a o boi real. De Garcia D’Ávilla na Bahia ao nelore, O boi que come capim”)
Rio: Vila Isabel (“Soy loco por ti América: A Vila canta a Latinidade”)
São Paulo Império de Casa Verde (“Do boi místico a o boi real. De Garcia D’Ávilla na Bahia ao nelore, O boi que come capim”)
Campeonato Brasileiro
São Paulo (Campeão)
Internacional (Vice)
São Paulo (Campeão)
Internacional (Vice)
Nos cinemas
O segredo de Brokeback Mountain (Ang Lee)
Match Point (Woody Allen)
O Cheiro do Ralo (Heitor Dhalia)
O Código Da Vinci (Ron Howard)
O segredo de Brokeback Mountain (Ang Lee)
Match Point (Woody Allen)
O Cheiro do Ralo (Heitor Dhalia)
O Código Da Vinci (Ron Howard)