Todos vão para estudar Medicina. O curso é mais barato do que no Brasil, não tem vestibular e o diploma é aceito na Europa. Os brasileiros estão mudando a cara da cidade.
Depois de cinco horas de trem, a partir de Moscou, o Estado chegou em Kursk na hora do almoço. O restaurante Natalia fica na avenida principal, a Karla Maksa. Com mesinhas de madeira escura do lado de fora e uma caixa de som tocando funk, o restaurante oferece pratos turcos, brasileiros e russos. Na quinta-feira, o PF tinha arroz, creme de milho e abobrinha. Foi uma volta ao Brasil. Só faltou o feijão. Como entrada, duas coxinhas. Delícia.
Quem assina o cardápio brasileiro é a chef de cozinha Phâmela Oliveira. Ao lado do marido Rodrigo Oliveira, ela vende 300 coxinhas por semana. Os russos se orientam pela propaganda boca a boca. Literalmente. “Um morador procurou a coxinha com uma foto no celular”, conta a goianiense Phâmela.
Numa sexta-feira de feijoada, são servidos cem pratos. Cada um custa 280 rublos (R$ 15). Tem até couve, plantada em uma horta familiar. “São minhas joias preciosas”, diz Anton Alexander, o proprietário. Ele prevê uma expansão do restaurante para o segundo semestre.
O cardápio foi dirigido para os brasileiros da Universidade Estatal de Medicina de Kursk (KMSU). Em 2013, eram 50 que se aventuravam pelo sul da Rússia. Hoje, são 400. Em número, eles só perdem para os indianos, mas ganham na influência. “Os vizinhos perguntaram se estava acontecendo alguma coisa por causa da gritaria. Mas era só o jogo do Brasil”, conta a estudante Gabriella Maccare, de 20 anos, que mora num apartamento perto da faculdade.
Foram os brasileiros que organizaram uma das festas mais animadas nos últimos anos. Eles conseguiram autorização para usar um bunker, um abrigo subterrâneo da Segunda Guerra. Foi a primeira comemoração da faculdade no local histórico. Até os russos elogiaram.
Kursk é uma cidade com cerca de 500 mil habitantes - a capital Moscou tem 12 milhões. Um dos motores do crescimento é a presença dos estrangeiros, principalmente os estudantes. A KMSU está entre as 10 melhores da Rússia e foi a primeira com graduação em inglês.
Custo baixo
Vários fatores atraem os brasileiros. O primeiro é o idioma, pois as outras universidades oferecem o curso em russo. Os custos são menores. Um semestre custa R$ 10 mil; no Brasil, a mensalidade custa R$ 7 mil. Por fim, não existe um vestibular tradicional. Há apenas uma prova classificatória. O curso tem seis anos, com carga horária de 11 mil horas/aula. O recém-formado pode trabalhar na Rússia e Europa. No Brasil, ele tem de fazer o Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos (Revalida). São 25 brasileiros formados por semestre.
Mas é duro pegar esse diploma. O ensino é rigoroso, quase militar. Por exemplo: os alunos se levantam quando o professor entra na sala. O Estado foi enxotado de uma sala durante a gravação em vídeo dos depoimentos dos alunos. Motivo: a inspetora precisava fechar a sala. “Não existe amizade entre professor e aluno como no Brasil”, conta Barbara Parente, natural de Porto Nacional (TO).
“A gente tem de se encaixar. Os brasileiros conseguem se adaptar, mas a gente percebe preconceito com outras nacionalidades, principalmente dos mais velhos. De cor e religião”, conta Gabriella.
“O primeiro ano é decisivo para a adaptação”, diz Barbara Ludmilla, outra de Tocantins.
Para Gabriella, o contato com os pacientes torna mais fácil superar as adversidades. “Eles gostam de ser tratados pelos brasileiros. Dizem que se sentem acolhidos”, diz a estudante, citando outra influência brasileira em Kursk, talvez a mais importante de todas.
Os pacientes gostam de ser tratados pelos brasileiros. Eles se sentem acolhidos.
Gabriella Maccare, estudante de Medicina em Kursk
Em imagens, a história da seleção brasileira na Copa do Mundo da Rússia
Salário baixo é empecilho para ficar
O casal Rodrigo e Phâmela de Oliveira é apaixonado pela Rússia. Eles vivem aqui há cinco anos e têm um filho, Rodrigo Jaime, que já se diz russo. É uma graça vê-lo falando bem os dois idiomas: português, com o pai, e russo, com a mãe. Rodrigo pai está terminando o curso de Medicina; Phâmela estuda russo e trabalha no restaurante Natalia. Tudo estaria perfeito se não fossem dois problemas. Eles não podem ter outro filho, como gostariam, porque ele não teria visto de permanência. Outra questão: o salário inicial de um médico na Rússia gira em torno de R$ 1 mil.
A questão do visto é polêmica. Rodrigo tem visto como estudante; Phâmela, também. A entidade onde ela estuda abriu uma exceção e concedeu visto para o primeiro filho. Mas avisou: um segundo não teria o mesmo benefício. A instituição de ensino não permite que o visto de permanência se estenda aos familiares. Vale só para o aluno. Com isso, ela teria de voltar para o Brasil no espaço de três meses caso tivesse o segundo filho. “Represento mão de obra específica da área de saúde. Acho que meu visto deveria se estender à família. Em algumas cidades, os pais conseguiram a extensão na Justiça”, conta Rodrigo.
Outro empecilho para o futuro na Rússia é a questão salarial. Como é grande a oferta de médicos em território russo, a remuneração é baixa no início da carreira. O salário inicial de um clínico-geral fica em torno de 18 mil rublos (R$ 1.100). Já um cirurgião da área privada, que começa a se fortalecer no mercado de saúde da Rússia, ganha 118 mil rublos (R$ 7.200). No Brasil, a remuneração do programa Mais Médicos, do Governo Federal, está em aproximadamente R$ 11 mil.
Por essas razões, o casal decidiu que não vai continuar na Rússia após a conquista do diploma. Essa também é a postura da maioria dos estudantes que o Estado ouviu em Kursk. “Se a remuneração fosse melhor, a gente ficaria aqui. Se eu decidir ficar mais um tempo pela especialização será apenas pelo meu filho, que já está adaptado”, afirma.
“Pretendo voltar para o Brasil, pegar o CRM (registro no Conselho Regional de Medicina), conseguir me estabilizar na carreira e fazer uma especialização fora do País. Ainda não sei se fico na Rússia”, diz Bárbara Ludmilla, que vai se formar no ano que vem.