quinta-feira, 31 de julho de 2014

"Os voos de um abutre", por José Casado

O Globo

Credor da Argentina, Paul Singer se aproveitou da derrocada financeira do país, mas é tido como ‘anjo’ em outros círculos



Que tal pagar apenas vinte centavos por cada dólar que comprar no banco da esquina? Foi o que fez o bilionário Paul Elliot Singer. Entre junho e novembro de 2008, ele gastou somente US$ 48,7 milhões na compra de títulos da dívida argentina cujo valor de face somava US$ 220 milhões na época.
Quando completar 70 anos, no próximo 22 de agosto, Singer estará cerca de US$ 1 bilhão mais rico. Esse valor é equivalente ao lucro líquido (depois de impostos) obtido no ano passado por sua E.M. Management Corporation, nave-mãe de um conglomerado de empresas dedicadas à administração de investimentos financeiros estimados em US$ 21 bilhões.

Ele viu uma oportunidade na Argentina de 2001, ano em que o país faliu e teve cinco presidentes numa única semana. Néstor Kirchner assumiu dois anos depois (eleito com 22,5% dos votos) e decretou moratória da dívida de US$ 120 bilhões e abriu uma renegociação com os credores. Em 2005 fechou acordo com 96% deles para pagar a longo prazo, com mais de dois terços de desconto sobre o valor de cada título.

Aos 61 anos, Elliot viu no arranjo de Kirchner uma oportunidade de lucro. Acumulava três décadas de experiência nas mesas de operações Wall Street, comprando empresas falidas, revendendo-as em fatias lucrativas e/ou brigando com os devedores nos tribunais.

Fez as contas e foi à feira livre das finanças globais no segundo semestre daquele ano, oferecendo US$ 0,20 à vista para cada US$ 1 a quem quisesse se livrar imediatamente dos papéis pintados argentinos. Sua E.M. Management Corporation embolsou o equivalente a duas centenas de milhões de dólares em títulos pagando menos de meia centena de milhões de dólares. Repetiu o negócio nos semestres seguintes, ao mesmo tempo em que recorria à Justiça em Nova York para receber do governo argentino cada dólar impresso como valor dos títulos. Ganhou a querela em todas as instâncias, até a Suprema Corte há 15 dias.

Ele se tornou o banqueiro “abutre” do momento no mercado mundial. Abutres são aves assemelhadas aos urubus e condores, plainam nas correntes de ar quente, sobrevoam cadáveres e têm hábitos necrófagos. Em outra época, antes da recente crise bancária americana, era qualificado de uma forma mais sofisticada, um típico integrante da turma dos “Senhores do Universo” de onde saiu o ganancioso, frio e inescrupuloso Gordon Gekko, interpretado por Michael Douglas em “Wall Street, Poder e Cobiça”, de 1987.

Singer e Gekko se parecem em muitos aspectos, principalmente naquilo que pessoas educadas segundo a tradição judaico-cristã tendem a rejeitar como imoral, a multiplição de lucros em cima de um moribundo financeiro, como aconteceu no caso da Argentina. No capitalismo, porém, nem sempre o imoral é ilegal — como demonstrou a Suprema Corte dos EUA.

Ele surgiu cerca de quatro décadas atrás na praça financeira de Nova York com dois diplomas, de direito por Havard e psicologia por Rochester, além de uma bolsa de US$ 1 milhão arrecadado na herança da família judia e amigos de outras crenças em Tenafly, lugar que segundo a revista “N.J. Monthly” é o sétimo melhor para se viver entre os pântanos de Nova Jersey.

O “abutre” da mesa de operações financeiras tem fama de arcanjo em outras áreas. É reconhecido como um líder de campanhas em Wall Street em defesa da igualdade de direitos LGBT, para gays, lésbicas e transgêneros. Patrocina organizações de defesa do casamento entre pessoas do mesmo sexo com o mesmo vigor da aposta na felicidade de seu filho, residente em Massachussetts que legalizou a união gay.

Sua maior batalha, até agora, não foi a da Argentina, mas dentro do Partido Republicano. Lutou duramente, em parceria com o ex-prefeito de Nova York Michael Bloomberg para eliminar a divisão partidária sobre os direitos civis da comunidade LGBT. Ted Olson, ex-procurador-geral do governo Geroge W. Bush, já disse achar que eles conseguiram. Planando em correntes de ar quente, o “abutre” Elliot avança, também, na renovação conservadora para a disputa eleitoral na sucessão do democrata Barack Obama na Casa Branca em 2016.