quinta-feira, 29 de março de 2018

"Polícias mundiais e crimes locais", Rubens Penha Cysne

O Globo


Bertrand Russel, falecido aos 98 anos em 1970, sugeriu, logo após o lançamento da segunda bomba atômica americana sobre o Japão, que os Estados Unidos tomassem para si as funções de guardião único de artefatos nucleares e de polícia mundial.

Respeitado filósofo, com reputação de pacifista convicto e nada admirador dos Estados Unidos, por que teria ele sugerido algo que hoje em dia soaria aos ouvidos de muitos como um despropósito? Seu raciocínio de então, correto ou não, contém elementos que podem ser úteis à análise da realidade brasileira atual.

Sua preocupação residia na corrida nuclear entre nações, a se dar a partir do episódio nuclear de 1945, e na suposta inexorabilidade de novo uso de armas de destruição em massa. Sua sugestão consta do texto “A bomba e a civilização”, publicado em 1945.

Russel concluiu que, para evitar o mal maior, uma trajetória de destruição da civilização humana, o ideal seria que todos os insumos necessários para a produção de armas nucleares fossem repassados a uma “Autoridade Internacional de Controle”, ou AIC. Seu bom senso, entretanto, o levou a admitir no mesmo ensaio que, temendo perder o poder, tal solução jamais seria aceita pelos Estados Unidos, então belicamente imbatível.

Segundo Russel, uma alternativa seria então ter os Estados Unidos tomando para si, definitivamente, o papel da agência internacional de controle, constituindo a partir daí uma espécie de polícia mundial. A ação, considerada pelo autor claramente como não ideal, porém preferível a uma repetição da catástrofe nuclear, deveria se dar antes que novos países adquirissem a tecnologia de destruição em massa.

O ponto subjacente ao raciocínio de Russel é que a existência de descentralização na posse de tecnologias de destruição e violência coloca todos sob grande e permanente risco. O temor de ser o primeiro a ser atacado em um mundo de poder atômico descentralizado elevaria as chances de uma guerra nuclear. A unicidade e centralização reduziria esse risco (ainda que, é claro, colocando outros em seu lugar).

No contexto mundial, o risco decorre da utilização de armas nucleares na guerra entre nações. No contexto de uma cidade, risco congênere ocorre quando da utilização de armamento em guerras entre facções operando à margem do Estado.

Há um ponto sobre o qual não pairam dúvidas. A ameaça da descentralização de tecnologias de violência é mais facilmente solucionável no ambiente interno a uma nação do que entre nações que se querem independentes e soberanas.

Dentro de cada país, a preocupação de Russel com os malefícios da descentralização das tecnologias de violência se resolve usualmente através de contratos sociais democraticamente legitimados que definem o Estado nacional como monopolista no uso legítimo da força física. Algo congênere ao papel que a AIC (ou os Estados Unidos, como segunda opção) ocuparia internacionalmente, na proposta de Russel.

O enfraquecimento do Estado formal através da leniência para com a criação de áreas geográficas com regras e leis próprias, amparadas pelo armamento local disponível (algo como Estados informais, ou feudais), entretanto, não permite que a centralização vislumbrada por Russel se concretize. Mesmo no contexto supostamente mais fácil, aquele restrito a um único país. Tal leniência estabelece não um monopólio do Estado, mas um nocivo oligopólio no uso da força.

Através de lutas fratricidas pela posse de poder relativo, diferentes facções operando à margem da lei passam a gerar, na escala urbana ou mesmo nacional, fato congênere ao que Russel temia na escala mundial. Uma competição geradora de inquietude constante e destruidora do bem-estar coletivo. Com a diferença de trocar-se o temor algo distante de uma bomba nuclear pelo medo próximo e cotidiano da bala perdida e da bala não perdida.

A descentralização interna do uso da força legitimada traz ainda dois riscos adicionais. Primeiro, possíveis coalizões dos Estados informais contra o Estado formal. Segundo, uma crescente representação política organizada dos Estados informais junto ao Estado formal, minando-o pelas bases. Nos dois casos, contam os Estados informais com a vantagem de não terem que se ater às regras cívicas definidas pelo Estado formal, o que facilita sobremaneira a sua ação.

Rubens Penha Cysne é professor da FGV EPGE