quinta-feira, 29 de março de 2018

O dia do juízo final

Carlos José Marques, IstoE


Vamos saber dentro em pouco se o Luis XVI dos trópicos, nosso vulgo Lula, será finalmente preso pelos crimes que cometeu ou se seguirá livre, leve e solto, com o beneplácito do Supremo check-in, que acomoda o séquito de poderosos da Corte no paraíso da impunidade, quaisquer que sejam os delitos praticados por seus membros. 

A referência ao monarca absolutista francês não é gratuita. Foi levantada inicialmente pela própria defesa do líder petista que, em um arroubo de erudição, misturou alhos e bugalhos comparando o Luis de lá e o de cá para salvaguardar a liberdade de seu cliente. 

Por vias tortas, deu certo.

O Tribunal encantou-se com a retórica. Imaginando-se talvez no clima do iluminismo europeu, produziu uma jabuticaba jurídica.

A sentença do “congelamento” temporário da condenação de Lula ainda pesa por esses dias como a mais depravada decisão de que se tem notícia na Corte para acobertar os abusos de quadrilheiros públicos e notórios.

Ao menos nesse pormenor o STF contraria os princípios ensinados pelo pensador iluminista Montesquieu que em sua obra maior, “O Espírito das Leis”, pregou que o Judiciário deve ser percebido como apolítico, um garantidor da estabilidade.

O Supremo não atendeu nem a uma coisa, nem a outra. Com a invencionice de um HC provisório – dá para definir assim – gerou instabilidade legal em cascata e reforçou os sinais de que pauta julgamentos pelo peso político que cada um deles carrega. 

O caso Lula atropelou trâmites, rompeu a jurisprudência em vigor e mostrou um comportamento impensável dos senhores ministros: eis o Judiciário que legisla, ferindo a regra basilar de separação dos poderes.

O mais triste é perceber que a avacalhação legal não encontra sequer respaldo na história.

Revisitando a experiência civilizatória que pôs a pique o reinado de Versailles, o Luis francês foi decapitado para consagrar a democracia moderna e os ventos de liberdade que influenciaram o mundo.

O Luis tupiniquim, um arrivista aproveitador das burras do Estado, ganhou de presente de Páscoa por seus feitos uma escapada, ao menos preliminar, da vida crua dos condenados. Resta saber se a alforria vai perdurar “ad aeternum”. A benevolência suprema parece atender com presteza aos apelos de certas figuras de nossa República.

Pena que nem todos os brasileiros tenham acesso a essa Justiça. Em jogo, no caso Lula, uma verdadeira anistia por crimes que quatro juízes, em duas instâncias, unanimemente, julgaram terem sido cometidos pelo réu. 

Receberá Lula novo salvo-conduto para continuar a delinquir? Segue o script e, inevitavelmente, entra na ordem do dia, mais uma vez, nesta quarta-feira, 4, o momento do juízo final. 

Irão os senhores togados do Supremo confirmar ao País que, sim, o crime compensa na esfera dos abonados – para quem as ações são meras peças protelatórias sem causa ou efeito –, dando início a um festival de HCs apelatórios dos encarcerados que pedirão igualdade de tratamento? Ou, definitivamente, os senhores magistrados darão fim à anarquia dos recursos em cascata que seguem em tramitação, por anos a fio, até que o crime prescreva? 

A depender da estirpe da banca e da qualidade dos advogados, a não prisão após a segunda instância – uma esquisitice jurídica que só teve guarida por aqui – representará o vale-tudo para marginais de alta patente, espécie de indulto de Páscoa. 

O tribunal do STF ainda pode piorar o quadro com um estratagema deplorável em meio à tensão que o País vive à espera do veredicto: um pedido de vistas providencial, lançado por um dos magistrados simpáticos à causa petista, que adiaria o resultado. Seria ardiloso demais, porém é o que se cogita a boca pequena em um ambiente legal notoriamente supercamarada. 

Ao contrário do que sustentou a presidente Cármen Lúcia, o Supremo se apequenou. O decano Celso de Mello já avisou que fará um “voto longo”, talvez para rebuscar com um palavrório enigmático sua predisposição pró-réu. 

O colega de turma, Gilmar Mendes, que defendeu ardorosamente, não faz muito tempo, a prisão em segunda instância – lembrando ser o Brasil o único a não exercê-la – pode, daqui para frente, caso mude de opinião, como tudo indica, se mostrar como um ambidestro intelectual que adapta suas convicções e interpretações às demandas de ocasião. Nada mais injusto que isso. É preciso coerência, estabilidade de decisões, tudo que o STF não tem apresentado por esses dias.

Se o Tribunal desta feita aceitar o habeas corpus de Lula, o Brasil volta a ser coberto pelo manto da impunidade para a vergonha, descrença e tristeza de seus cidadãos de bem, confirmando a sina de que a Justiça sempre tarda e falha.