sábado, 31 de março de 2018

"Pega a Netflix", por J.R. Guzzo

Veja

Poucas coisas estão criando tanta irritação hoje em dia no condomínio político e mental ao qual se dá o nome de “esquerda brasileira” quanto a liberdade de expressão. O ex–presidente Lula, o PT e seu entorno se preocupam cada vez menos em disfarçar isso – na verdade, do jeito que vão as coisas, daqui a pouco vão acabar incluindo a censura entre as promessas do governo que pretendem iniciar no dia 1º de janeiro de 2019.
(Será preciso primeiro que o Supremo Tribunal Federal declare extinta para sempre a punição dos crimes de corrupção quando cometidos por políticos tamanho “extra-large” e que estejam na frente nas “pesquisas eleitorais” — de preferência se já estiverem condenados em segunda instância a cumprir doze anos de cadeia. Mas isso, pelo que indica o comportamento atual dos sócios-proprietários do STF, dá a impressão de ser coisa que já está resolvida.) 
O problema, cada vez mais, parece ser o seguinte: como é que o “novo governo” vai calar a boca de quem quer dizer o que pensa? Lula e o PT já reconheceram que o principal erro da sua primeira estadia no poder (salvo, possivelmente, a ideia de transformar Dilma Rousseff em presidente da República), foi não ter criado a censura no Brasil. Não falam “censura”, claro. Falam em “controle social dos meios de comunicação”.
Tanto faz, podem falar o que quiserem – é exatamente a mesma coisa. Agora, com a esperança de chegar lá outra vez, e com um horror à liberdade que vai se colocando entre a histeria e o ódio, parecem dispostos a não cometer o erro outra vez.
No momento, o que está deixando a esquerda em estado avançado de cólera é a série “O Mecanismo”, uma produção internacional do diretor José Padilha, que está sendo exibida pela Netflix e cujo enredo se inspira no ambiente de ladroagem sem limites criado no Brasil a partir, principalmente, da chegada do PT ao governo do país. 
Não é um documentário. É uma obra de ficção. Não tem obrigação nenhuma, portanto, de reproduzir os fatos exatamente da maneira como aconteceram – da mesma forma como não se pode cobrar de Machado de Assis, por exemplo, uma descrição precisa, com estatísticas, atas, biografias autênticas e comprovação fotográfica dos episódios de Dom Casmurro
Mas a história de Padilha é tão parecida com a vida real, e tão parecida com a roubalheira comandada pelo complexo Lula-PT, que o ex-presidente e sua turma saem muito mal na foto – saem horríveis, na verdade. Tiveram então, mais uma vez, a reação automática que têm diante de qualquer obra que não gostam: apelam para a repressão. 
Lula prometeu “processar a Netflix”; disse que não vai “aceitar isso”. 
Eis aí o mundo petista em seu estado mais puro. Lula não tem de “aceitar” ou “não aceitar” coisa nenhuma. Não cabe a ele permitir ou proibir nada, nem selecionar para a exibição pública apenas os filmes que aprovar. Mas é exatamente assim que a esquerda pensa e age no Brasil.
Para filmes, músicas, exposições, páginas do Facebook, imprensa em geral – eles estão convencidos de que só deve ser publicado aquilo que autorizarem. 
Não podem impor essa censura agora. Mas dão a impressão exata de que vão fazer isso assim que puderem.
É o tal “controle social da mídia”.
A ira diante de “O Mecanismo” foi especialmente neurótica. 
Até Dilma Rousseff, em mais uma convulsão no túmulo mental onde jaz desde que foi despejada da presidência, imaginou que poderia contribuir com o esforço para calar o filme – disse que sairá “pelo mundo”, imaginem só, avisando “os governos” que eles devem banir a Netflix dos seus territórios.
“Eles não sabem com quem foram se meter”, disse Dilma. Não sabem mesmo; ninguém sabe. 
Qual seria a primeira potência a ser advertida? Em que dia? A quais governos do mundo ela vai dar as suas instruções? O de Sua Majestade Britânica? O do presidente Putin? A China? Quem? Dilma não vai falar nem com o governo companheiro da Venezuela, mas fazer o que? Nessas horas o complexo petista tem uma atração irresistível pela palhaçada. Não é apenas a reação totalitária de vetar, e proibir, e punir — é, também, a ânsia de não perder nenhuma oportunidade de dizer coisas particularmente idiotas. 
Quanto ao “processo” de Lula, é melhor esperar. Os cemitérios estão lotados de “processos” que Lula jurou abrir, contra o mundo e o resto do Sistema Solar, e dos quais nunca mais se ouve falar. Ele sempre pode pedir que um ministro Toffoli, por exemplo, baixe um “salve” proibindo o filme. Ou o ministro Lewandovski, talvez? Quem sabe um Marco Aurélio, ou mesmo um Barroso? Não custaria nada tentar. Mas talvez seja melhor deixar quieto; os ministros já estão ocupados demais em arrumar sua vida, neste momento.
A série da Netflix, no fundo, é um choque para Lula. Ele e a esquerda estão viciados, há anos, em ser tratados da maneira mais servil que se possa imaginar pela maioria da “classe artística” do Brasil. Foram quase quinze anos de puxação de saco desesperada, contínua e remunerada com dinheiro do Erário. 
Valeu tudo, aí. Filme, livro, música, festival, show, e até documentário que fingia ser documentário – tudo, no fundo, apenas propaganda. Mas agora, quando aparece um cineasta de talento real, possivelmente o único diretor de cinema brasileiro verdadeiramente respeitado no mercado internacional, onde só faz sucesso quem é bom e os críticos dos “cadernos culturais” do Brasil não servem para nada – bem, quando aparece alguém como Padilha, que ainda por cima é um sujeito independente, a turma entra em estado de coma no aparelho cerebral.
Como assim? Um filme falando mal da nossa luta? O que “está por trás” disso? É a direita, claro. É um plano da CIA, via Netflix, para não deixar que Lula seja de novo presidente do país e salve os milhões de pobres criados por Michel Temer neste ano e pouco em que o PT ficou fora do governo.
Chama a atenção, neste momento, a circunstância de que uma boa parte dos jornalistas e dos meios de comunicação tenham se colocado, com maior ou menor clareza, contra o filme de Padilha e a favor da censura petista. É o que fizeram na prática e na vida real. 
Claro, claro; falam no direito de crítica e nos méritos do jornalismo investigativo — e de fato se lançaram à busca e apreensão de falhas em “O Mecanismo” com a aplicação de quem estivesse apurando a verdade sobre o Terceiro Segredo de Nossa Senhora de Fátima. 
Muito justo. Mas não houve nenhum esforço parecido para fazer jornalismo investigativo sobre o filme “Lula, o Filho do Brasil”, uma produção da Globofilmes e do diretor Luis Carlos Barreto, financiada por empreiteiras de obras e fornecedores do governo, que se apresentava como uma biografia do ex-presidente.
A mídia noticiou, discretamente, que o filme foi um fiasco de público. Mas nenhum órgão de imprensa se animou a investigar nada sobre os fatos e detalhes narrados pelo cineasta.
No caso de “O Mecanismo” foi o contrário – o filme passou por um interrogatório completo e acabou sendo severamente condenado por suas “falhas históricas”. Mas é uma peça de ficção, como está dito e escrito da maneira mais clara possível; não tem nenhum cabimento exigir da obra a reprodução exata disso ou daquilo, porque o autor tem o direito de fazer seu filme do jeito que achar melhor. Não se trata de “fake news”, como a esquerda diz, porque a série jamais se comprometeu a dar nenhuma “news”. Isso se chama liberdade de expressão. 
E é isso que provoca tanta revolta. (Um jornalista, na ânsia de apontar os crimes da série, se atrapalhou e a chamou de “obra fictícia”, em vez de obra de ficção. Um outro, um pouco antes, tinha garantido que um recurso jurídico, desses que vivem por aí, não tinha “efeito suspensório”. Vasos comunicantes, talvez, nos circuitos mentais da imprensa contemporânea.)
“Essa discussão é como se o sujeito entrasse na sua casa, estuprasse sua esposa, amarrasse seu filho, roubasse um isqueiro”, comentou José Padilha a respeito das críticas. “A esquerda quer discutir o isqueiro, porque, se ela olhar para o macro, para o que aconteceu, não vai ter o que falar”. Não vai mesmo. Fim de conversa. Nessas horas, quando não há mais nada para conversar, aparecem as soluções de ditadura: processo, ameaça, censura. 
Até hoje Lula e sua esquerda não descobriram nenhuma outra maneira de lidar com pessoas livres.