domingo, 4 de março de 2018

China tem a sua versão própria do sonho americano

Adriana Carranca, O Globo


Em Morningside Heights, o bairro vizinho ao histórico Harlem onde está a Universidade de Columbia, o idioma predominante nas ruas é o chinês. Nas três quadras e meia que percorro diariamente até o campus há um dinner americano, uma deli italiana, um bistrô francês, e quatro restaurantes e fastfood chineses. Há hoje três vezes mais restaurantes chineses do que McDonald’s nos EUA e três em cada dez alunos estrangeiros de universidades americanas são chineses.

Dizem por aqui que China — a ainda comunista China — está usando as armas do “inimigo” (o capitalismo) contra ele. O restabelecimento formal das relações entre os dois países, em 1979, ajudou a impulsionar as reformas que vinham sendo planejadas pela Partido Comunista da China (PCC), que adotou métodos capitalistas para estimular a economia sem, no entanto, abrir mão do controle estatal.

A China ascendeu a segunda economia do mundo sob a mão de ferro do Partido Comunista que, no último domingo, revelou planos de acabar com o limite de cinco anos do mandato presidencial, abrindo caminho para o líder Xi Jinping permanecer no cargo por tempo indeterminado.

No último congresso do PCC, Xi Jinping prometeu colocar a China “no palco central do mundo”. Em outras palavras, o presidente quer tornar a China grande de novo. É o que os delegados do partido chamam de “pensamento de Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas para a nova era”.

O presidente Donald Trump declarou recentemente que a China “desafia o poder, a influência e os interesses americanos” e tenta “destruir a segurança e prosperidade” dos EUA. Nos últimos dois anos, os investimentos chineses nos Estados Unidos quadruplicaram. Mas a recíproca não é verdadeira. A política protecionista do PCC não dá aos EUA o mesmo acesso ao mercado chinês.

Semanas atrás, antes de viajar à América Latina, o secretário de Estado americano, Rex Tillerson, comparou os investimentos chineses no continente ao colonialismo europeu. Tillerson disse que os investimentos quase sempre exigem o uso de mão de obra importada e envolvem grandes empréstimos que, a longo prazo, levam a dívidas insustentáveis e à dependência (os Estados Unidos têm um déficit comercial de US$ 347 bilhões com a China).

Tillerson também acusou a China de ignorar os direitos de propriedade intelectual. Mas, segundo escreveu Rebecca Fannin, autora de “Silicon Dragon” (“O dragão do silício”), em artigo na “Forbes”, “copiar ideias do Ocidente” faz parte do passado da China. “Não é mais considerado piada dizer que a China está ganhando a corrida tecnológica”.

Os EUA já não têm o monopólio das maiores empresas de tecnologia do mundo, dividem o pódio com as chinesas. Segundo o relatório da Organização Mundial de Propriedade Intelectual, publicado em dezembro, os pedidos mundiais de patentes, marcas e desenhos industriais bateram recorde no ano anterior, graças à China. Os chineses depositaram mais patentes naquele ano do que os Estados Unidos, Japão, Coreia do Sul e o Instituto Europeu de Patentes somados.

Empresas chinesas passaram a investir em massa no exterior, após o Banco Central da China anunciar reformas no sistema monetário e financeiro para transformar o yuan em moeda de reserva, ao lado do dólar e do euro. Em 2016, o yuan entrou para o clube fechado das moedas de referência do FMI, o que colocou o PCC na mesa de discussões sobre reforma monetária e rendeu-lhe benefícios extras no mercado internacional.

Nos EUA, os chineses injetaram dinheiro nos setores de tecnologia, transportes, energia, agricultura e indústria, e se tornaram os maiores investidores do mercado imobiliário, o que inclui a compra de grandes redes hoteleiras americanas — e levou a Casa Branca a adotar medidas para limitar o fluxo de dinheiro chinês.

Durante a Assembleia Geral da ONU, que acontece todos os anos em outubro, os presidentes americanos hospedavam-se tradicionalmente no Hotel Waldorf Astoria — de Herbert Hoover, em 1929, a Barack Obama, em 2014, todos os governantes americanos ocuparam a cobertura do hotel durante os dias em que líderes de todo o mundo reúnem-se em Nova York. O prédio chegou a ter uma plataforma de trem secreta para acesso de hóspedes habitués como Franklin Delano Roosevelt. A tradição foi quebrada após uma empresa chinesa comprar o hotel. Desde então, a delegação do PCC ocupa os três últimos andares do Waldorf Astoria durante a Assembleia da ONU.

É a versão chinesa do sonho americano.