Rodrigo Zeidan - Folha de São Paulo
Meritocracia de verdade não existe nem nunca vai existir em lugar nenhum do mundo, já que, para que ela exista, é preciso real igualdade de oportunidades. Mas mobilidade social é fundamental para o verdadeiro desenvolvimento de um país. Quanto mais as pessoas puderem se esforçar para crescer, melhor para toda a sociedade.
Na China, diferentemente da maioria dos países do mundo, há pelo menos uma forma de mobilidade social, aberta há mais de mil anos, a todas as pessoas de qualquer idade: o exame imperial, que na sua versão moderna é dividido em dois tipos: os concursos públicos, que parecem os que acontecem no Brasil, e o gaokao, similar ao Enem.
Na Ásia, a competição pelas melhores escolas é feroz, e as famílias sacrificam muitos recursos para incentivar os filhos a galgar o sistema educacional como saída da pobreza. O sistema educacional na China é melhor que no Brasil justamente porque as famílias demandam e estão dispostas a gastar mais recursos em educação.
O caso chinês é interessante porque mostra o poder da evolução de normas sociais e como elas impactam o presente, apesar de terem surgido dezenas de gerações atrás.
O exame imperial chinês surgiu há mais de 2.000 anos, na dinastia Han, e de meados da dinastia Tang (que durou de 618 a 901 a.D.) até 1905, quando foi abolido, era a principal forma de entrada na burocracia chinesa.
Assim como no Brasil hoje, com o sistema de concursos públicos, o exame imperial era uma forma de ascender à elite. Como o exame imperial durou mais de mil anos e esteve durante esse tempo combinado a um sistema imperial no qual as possibilidades de ascensão social eram praticamente inexistentes, ele gerou, através do tempo, uma demanda grande por investimentos educacionais por parte das famílias chinesas.
Mas como, no caso chinês, as famílias venciam a miopia do curto prazo, que aflige o Brasil? A resposta é uma combinação de normas sociais diferentes e um prazo realmente longo para que os sinais do mercado de trabalho gerassem mais investimentos educacionais.
Em especial, a pobreza absoluta e períodos de miséria tornaram a unidade familiar o principal construto social, no qual os sacrifícios de curto prazo e mecanismos de seguro intrafamília são a norma, de forma a suportar períodos traumáticos.
O resultado é uma quebra do curto-prazismo pelo foco no sacrifício familiar. É por isso que muitos dos países asiáticos estão entre os mais poupadores do mundo e também entre aqueles que mais investem recursos familiares em educação. Sempre houve o exame imperial como saída da pobreza, e a unidade familiar, como superior ao indivíduo, permite tomadas de decisão com prazo mais longo.
Mas, se no Brasil também temos o Enem e os famosos concursos públicos, com milhares de concurseiros dedicados a uma vaga no setor público, por que na China os concursos geram mobilidade e aqui não (a maioria dos que passam no Brasil é membro das elites, com diversos novos desembargadores sendo filhos de membros antigos, por exemplo)?
São três as razões:
1) na China, os concursos geraram externalidades positivas porque motivaram todas as famílias a investir mais em educação;
2) diferentemente do Brasil, o nível de rentismo do funcionalismo público -ou seja, o quanto de renda da sociedade é extraído sem contrapartida- é muito menor, já que os salários são em média menores do que no setor privado, embora mais altos que a média dos salários do país;
3) e, por último, as normas sociais não veem o Estado como provedor -a competição por educação gera também maior competição no mercado de trabalho, com uma população muito mais produtiva que no Brasil ou em outros países de renda média.
O exame imperial no passado e o gaokao hoje criaram uma pressão da sociedade por educação que não encontra paralelo em outras economias mundiais. Esse investimento familiar em educação é fundamental para explicar o recente sucesso econômico da China e é parte do modelo de meritocracia com características chinesas.