texto CAIO FARAH RODRIGUEZ - Folha de São Paulo
ilustração FABIOLA RACY
RESUMO Autor argumenta que uma das principais inovações da Lava Jato está nos acordos de leniência. Afirma que as empresas que decidem colaborar com o MPF se tornam "cães de guarda" dos mercados. Como estão sujeitas a padrões rigorosos de integridade, não podem aceitar práticas ilícitas dos concorrentes.
Fabiola Racy | ||
O tema da corrupção presta-se facilmente a manipulações retóricas. No Brasil, não foi diferente. A defesa da pureza da democracia e da limpeza na política já foi pretexto para violência física e moral e até golpes de Estado.
Para alguns, a Operação Lava Jato nada mais é do que a repetição da mesma história. A pretexto de combater a corrupção, certo grupo orienta o aparato estatal para subjugar adversários, ascender na escala da dominação social e esvaziar o debate político.
A cautela é compreensível. Um dos riscos do discurso do combate à corrupção é a frequente associação entre seus aspectos alegadamente morais e seus traços institucionais, como se fossem duas faces da mesma moeda.
Muitas vezes, contudo, os aspectos pretensamente moralizantes são vazios ou seletivos. A maneira de agir preconizada por quem se vale da retórica anticorrupção não é aplicada a si mesmo tanto quanto ao adversário.
Essa dificuldade em dissociar aspectos morais e institucionais parece confirmada por recente pesquisa Datafolha. Expressivos 64% dos entrevistados entendem que o Ministério Público agiu mal ao não prender os controladores da JBS que colaboraram com a Justiça.
Ao mesmo tempo, 83% concordam que o presidente Michel Temer (PMDB) teve participação direta nos ilícitos revelados pelas gravações entregues como parte da mesma colaboração.
Ou seja, apesar de considerarem útil o resultado do acordo com os procuradores federais, muitos ainda torcem o nariz para esse mecanismo.
Interpretação possível desses dados é a de que a população entende a colaboração, em grande parte, como instrumento de confissão. Entretanto, a utilidade pública das delações premiadas (pessoas físicas) e dos acordos de leniência (empresas) não se mede tanto pelo grau de penitência dos colaboradores, mas, sobretudo, pelo potencial de alavancar investigações a respeito de outras pessoas e organizações, que cometeram ou ainda cometem crimes graves que dificilmente seriam desbaratados por outros meios.
Essa conclusão foi confirmada na quinta-feira (29) pelo Supremo Tribunal Federal, que decidiu que a eventual discordância —mesmo entre membros do Judiciário— quanto à "conveniência e oportunidade" dos benefícios conferidos a colaboradores não afeta a validade jurídica das delações.
Neste artigo, procuro destacar outras utilidades dos acordos de leniência celebrados por empresas ainda pouco notadas.
Marlene Bergamo/Folhapress | ||
Opositor do alcance irrestrito das delações, Gilmar Mendes, ministro do STF, discursa na Fiesp |
INOVAÇÃO
Antes de chegar a esses pontos, porém, é preciso resgatar outros aspectos da Lava Jato que merecem a atenção e que sugerem que a operação pode representar verdadeira fonte de inovação institucional, dentro das regras do jogo, e oportunidade para enriquecimento do debate público.
Para essa análise, vale lembrar que o sentido sociológico e as consequências práticas de um fenômeno não coincidem necessariamente com a percepção psicológica daqueles que dele participam como agentes.
O primeiro traço novo diz respeito ao tipo de fato que se desvelou publicamente. A Lava Jato não escancarou apenas grave corrupção de funcionários públicos, mas uma prática mais ampla de dominação social: a aliança entre grupos políticos, empresariais e burocráticos que se valem de canais institucionais e vastos recursos públicos e quase públicos (por exemplo, fundos de pensão de empresas estatais e depósitos realizados em garantia à situação de desemprego) com a finalidade de perpetuar ou expandir o seu poder político, econômico e social.
Outra novidade é que, contra as previsões (compreensivelmente) mais céticas, a aliança empresarial-estatal começou de fato a ser fraturada pelos efeitos das ações do Ministério Público, da polícia e do Judiciário, incluindo amplo espectro político-partidário.
Por essas razões, parece pertinente designar o tipo de corrupção enfrentada não só como sistêmica, ou seja, disseminada e realizada sistematicamente, mas também estrutural, isto é, modeladora dos tipos de relação entre Estado e empresas. Seu efeito é restringir as possibilidades combinatórias da política brasileira a poucas opções com chances reais de êxito.
O resultado é sutil, porém determinante. Trata-se menos de conseguir um objetivo frontalmente contrário ao interesse público do que de fazer com que certa opção, entre várias compatíveis com o interesse público, torne-se mais provável. Uma captura não apenas do Estado, mas do futuro.
Pedro Ladeira/Reuters | ||
O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, responsável por acusações na Lava Jato |
Um exemplo simplista seria a escolha entre construir um hospital público de ponta ou uma usina hidrelétrica. As duas opções têm justificativas e não são necessariamente excludentes, salvo ao competirem por recursos escassos.
Se as duas opções são justificáveis, o que deveria impedir os agentes privados e públicos em aliança de entortar um pouco a balança, assegurando aquela que dê mais lucro ou proveito para ambos?
Caso ocorresse uma única vez, seria somente caso de polícia. O problema maior, contudo, é o efeito cumulativo sobre o funcionamento da democracia bem como sobre as possibilidades de transformação do país. Essa prática implica controle de demandas populares por determinado grupo que, no caso, procura se imunizar contra o conflito social, evitando se submeter à disputa política aberta.
O atendimento a demandas sociais até existe, mas como concessão, benevolência. O que importa, no fim, é: quem decide as questões públicas?
MÃOS LIMPAS?
A Lava Jato supriu evidência empírica muito robusta da resposta a essa pergunta.
O Brasil funciona, na maior parte das vezes, sob a forma política da oligarquia, não da democracia.
Como tomar com leveza uma situação em que a estrutura social contradiz de modo tão direto e profundo os princípios mais básicos de nossa organização constitucional?
Sob esse ângulo, o exemplo mais fecundo para reflexão sobre a Lava Jato não seria tanto a operação Mãos Limpas, na Itália, mas o processo Brown versus Board of Education (Brown contra Junta de Educação), decidido em 1954 pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Trata-se do caso mais importante da jurisprudência constitucional americana no século 20.
A despeito das diferenças evidentes, naquele caso também estava em questão a contradição profunda entre as normas mais básicas do direito estabelecido (a igualdade na educação) e a estrutura social de segregação e exclusão racial.
Reprodução | ||
O empresário Marcelo Odebrecht em um dos muitos vídeos em que detalha sua delação premiada |
Ao reconhecer a uma menina negra o direito de se matricular em um colégio localizado em distrito escolar no qual habitavam apenas brancos, a Suprema Corte considerou não ser suficiente declarar o direito. Orientou cortes inferiores a tomar medidas necessárias para efetivar a promessa constitucional de igualdade na educação, o que incluiu —por intermédio das chamadas ordens judiciais de dessegregação— realocar linhas de ônibus entre distritos escolares, capacitar professores para ensinar em ambiente de maior diversidade, rever bibliotecas etc.
Não se tratava de simples soma de condutas individuais de violação do direito estabelecido, mas de um largo segmento da sociedade que se contrapunha a normas fundamentais da organização jurídica do país, sem que suas vítimas pudessem escapar de suas consequências pelos recursos que lhes eram usualmente disponíveis.
A partir dessa situação, criou-se uma prática judicial nos EUA (chamada de execução complexa), para além da aplicação típica da lei
a controvérsias específicas. Seu emprego, que contou muitas vezes com o apoio do Poder Executivo, estendeu-se de escolas a hospitais públicos e prisões.
a controvérsias específicas. Seu emprego, que contou muitas vezes com o apoio do Poder Executivo, estendeu-se de escolas a hospitais públicos e prisões.
O Direito serviu mais para desestabilizar costumes arraigados do que para refleti-los.
Nada disso ocorreu sem erros e críticas, nem a execução complexa sob supervisão da Justiça atingiu perfeitamente seus objetivos, em especial quando não houve cooperação de outras instituições. Até hoje se discutem as vantagens e desvantagens da atuação judicial em casos similares.
O exemplo não serve como mensagem do que fazer no Brasil, nem para louvar como heroica qualquer atuação expansiva de instituições existentes. Serve apenas para explicitar que, apesar de rara e grave, a mesma situação de contradição profunda entre o Direito e estruturas sociais arraigadas não é peculiar ao Brasil e pode ser enfrentada com as instituições que temos, com o objetivo de instaurar ou aprofundar uma lógica de legalidade e juridicidade em áreas onde essas noções têm baixa prevalência.
SOPA DE LETRINHAS
No Brasil, o enfrentamento dos fatos evidenciados pela Operação Lava Jato, embora requeira diversas inovações jurídicas, também não exige a criação de órgão específico.
Já se criticou a existência de muitas leis e diversos órgãos, com competência concorrente e sobreposta, para tratar de casos de corrupção.
A sopa de letrinhas, só no nível federal, inclui CGU (Ministério da Transparência e Controladoria Geral da União), AGU (Advocacia-Geral da União), TCU (Tribunal de Contas da União), MPF (Ministério Público Federal), PF (Polícia Federal), Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), STF (Supremo Tribunal Federal) etc.
Essa "pluralidade institucional" não é aspecto necessariamente negativo do Direito brasileiro. Ao contrário, justifica-se —inclusive internacionalmente— na preocupação de impedir que o sistema de combate à corrupção seja capturado como um todo por interesses particulares e de evitar que determinados órgãos dele integrantes sirvam a interesses secundários (de si próprios e de seus membros ou superiores) em detrimento do interesse público primário.
Se tivéssemos que desenhar uma instituição para tratar dos fatos revelados pela Lava Jato, provavelmente imaginaríamos um órgão dotado de quatro características: competência ampla (criminal e civil/administrativa, com alcance não apenas sobre funcionários públicos mas também sobre políticos), independência institucional (isto é, sem subordinação a órgãos políticos), prerrogativa de iniciativa (ou seja, dar início a ações efetivas de combate) e sujeição a controle externo de legalidade por outra instituição politicamente independente
Não é por acaso, portanto, que o MPF tenha assumido a liderança na operação. O Ministério Público, com atuação controlada pelo Judiciário, é instituição estatal que possui, ao mesmo tempo e por via constitucional, os atributos institucionais enumerados, o que fortalece a legitimidade, a juridicidade e a eficácia de suas ações.
Tal afirmação não exime o MPF de erros e, portanto, de críticas. Nem, muito menos, implica contrapô-lo ao eventual exercício legítimo de competência por outros órgãos. Essa contraposição é uma falsa questão, que só interessa àqueles não comprometidos com o efetivo combate à corrupção ou simplesmente interessados em protagonismo institucional artificial.
Trata-se apenas de reconhecer que, em razão da natureza, da complexidade e da especificidade dos fatos evidenciados pela Lava Jato, somente um órgão de Estado com as características institucionais apontadas poderia estar legitimado a impulsionar o tratamento do assunto com a abrangência, a isenção e a coesão necessárias.
CAPITALISTAS
Há ainda outra novidade da Lava Jato, mas que, a despeito de sua relevância, tem passado relativamente despercebida. Atenta-se pouco para seus efeitos sobre as relações privadas.
A tradução jurídico-econômica da aliança empresarial-estatal objeto da Operação Lava Jato é a organização do mercado sob a forma particular de oligopólios dependentes do Estado. Estes se organizam, tipicamente, sob a forma de cartéis cambiantes: uma dança das cadeiras em busca de projetos públicos, mas sempre entre os mesmos agentes, os quais evitam competir entre si.
Não se trata aqui da questão quanto ao tamanho do Estado. Aliás, as evidências empíricas disponíveis —ainda que imperfeitas— não confirmam, no mundo, correlação positiva entre tamanho do Estado (medido em proporção do PIB) e grau de corrupção (medido por índice de percepção) de certo país.
Trata-se, a rigor, de uma maneira específica de organizar a vida econômica, e da relação público-privada com respeito a atividades produtivas, cujas características peculiares incluem concentração de poder, centralização decisória, favores oficiais e dinheiro público e dos trabalhadores. Esta configuração, sim, representa hipótese plausível de facilitar captura e corrupção generalizada.
A discussão dessa agenda, ao mesmo tempo oligopolista e burocrática, não é nova.
Explicitou-se ao menos desde o 2º Plano Nacional de Desenvolvimento, iniciado por Ernesto Geisel (1907-1996) na década de 1970. Não foi significativamente renovada desde então, mesmo com inovações legislativas pontuais.
Um exemplo é a inocuidade do chamado "kit compliance", previsto na chamada Lei Anticorrupção (lei 12.846/13).
Trata-se de um conjunto de regras de conduta e sistemas de controle pelo qual as empresas que alegavam adotá-lo se comprometiam a criar mecanismos internos para cumprir leis e evitar desvios. A adoção do pacote atenuaria eventuais sanções impostas por violação da lei. Em muitos casos, no entanto, era, como se diz, só para inglês ver. O kit ia para a gaveta assim que elaborado.
Marcelo Justo/Folhapress | ||
O coordenador da força-tarefa da Lava Jato, Deltan Dallagnol, durante palestra sobre ética |
LENIÊNCIA
A mudança real só veio por intermédio de instrumento inovador no Brasil: o acordo de leniência. Com ele, a força-tarefa do MPF na Lava Jato conseguiu implementar, na prática negocial, aquilo que poucos conseguiriam fazer por lei.
Sujeitou algumas das maiores empresas do setor de infraestrutura brasileiro —agora expandido a outros setores, como o de proteína animal— a regime severo de práticas de integridade e de readequação de suas atividades a padrões de mercado.
O acordo de leniência celebrado pelo MPF não é para inglês ver. Além de criar obrigações rigorosas de integridade, segundo os mais altos padrões mundiais, e de, ao menos no caso da Odebrecht, instituir a figura do monitor independente (designado pela força-tarefa) encarregado de verificar seu efetivo cumprimento e adequação, estipulou consequências muito gravosas em caso de descumprimento.
Entre elas está o vencimento antecipado das obrigações de pagamento previstas nos acordos e, mais importante, a possibilidade de uso das informações relevadas pela empresa contra ela mesma. Soma-se a isso a perda de crédito financeiro, cuja concessão, nos mercados de hoje, depende em grande medida da confiança depositada no cumprimento do ajustado.
Ou seja, descumprimento é igual a morte empresarial imediata.
O mais relevante é que, além do interesse de evitarem a própria extinção, as chamadas empresas colaboradoras (isto é, aquelas que celebraram acordo de leniência com o MPF) passam a servir como "cães de guarda" dos mercados em que atuam. Isso porque, como estão efetivamente sujeitas a regras rigorosas, estarão em desvantagem competitiva se suas concorrentes se valerem de práticas ilícitas.
Conforme publicado nesta Folha em março, a socióloga Beatrice Edwards, estudiosa do Government Accountability Project - Truth be Told (projeto de responsabilidade governamental - a verdade deve ser dita), organização internacional que zela por informantes, veio recentemente ao Brasil e procurou enfatizar que a desconfiança em relação a quem colabora com a Justiça é mal direcionada.
A motivação pessoal ou empresarial (sobrevivência, redução de sanções, proteção contra retaliação etc.) dos colaboradores não é relevante diante do interesse público na preservação do instrumento da colaboração.
CRITÉRIOS
De fato, são vários os parâmetros de avaliação do interesse público em determinada colaboração empresarial.
Em relação ao conteúdo —isto é, sobretudo em relação às informações e provas—, a relevância pública será tão mais caracterizada quanto maior for a sua amplitude (por exemplo, abranger amplo espectro político-partidário), sua sensibilidade (envolver agentes políticos de alto escalão), sua densidade (referir-se não a atos isolados, mas a uma prática sistemática e arraigada, que desarticula o funcionamento da democracia), seu ineditismo (criação de linhas de investigação), sua utilidade (na alavancagem de investigações), sua profundidade e seu detalhamento (descrição não meramente retórica de fatos, mas a apresentação de detalhes e dados de corroboração robustos), entre outros.
Mas, além disso, a relevância pública de eventual acordo de leniência empresarial está diretamente ligada à interrupção imediata de atos ilícitos e à oportunidade de transformar agente privado em vetor de transformação dos mercados em que atua. É uma segunda chance, sim, mas sob condições.
Os acordos de leniência, por isso, representam muito mais do que mera confissão.
A colaboração de organizações empresariais com o MPF, especialmente aquelas que são protagonistas em seus mercados, oferece robustez probatória singular (bases de dados, transferências bancárias etc.) e a visão integrada (não apenas individual) do funcionamento de condutas ilícitas que tenham se tornado práticas arraigadas na relação público-privada, aportando elementos úteis, e muitas vezes indispensáveis, para sua descoberta e desfazimento, em prazos e condições que, diante da natureza e complexidade das condutas, não seriam possíveis de outra forma.
Trata-se de mais uma diferença em relação à Mãos Limpas, na Itália. Lá, as empresas não apareceram como agentes de transformação. Aqui, independentemente das intempéries que ainda escurecem o horizonte da Lava Jato, já se pode falar num legado empresarial: impor o capitalismo aos capitalistas.
A simples possibilidade criada demonstra a direta compatibilidade da Operação Lava Jato com a agenda de desenvolvimento econômico de longo prazo no Brasil. Ninguém imaginaria que o choque de legalidade viria por contrato.
Será que finalmente os empresários estarão sujeitos a concorrência implacável, que somente pode ser enfrentada com competência verdadeira?
CAIO FARAH RODRIGUEZ, 43, é professor-fundador da Escola de Direito da FGV/RJ. Como advogado, atuou na negociação do acordo de leniência da Odebrecht.