Desde o primeiro artigo que escrevi, em 2015, sobre as semelhanças e diferenças entre as Operações Mãos Limpas, na Itália, e Lava Jato, no Brasil, sempre mantive a esperança de que aprenderíamos com a História, evitando cometer os mesmos custosos erros do passado. Confesso que eventos recentes me levam a duvidar disso. A estridência com que interesses individuais são defendidos se sobrepõe ao único objetivo que deveria nortear as escolhas de quem detém o poder, que é o de defender os interesses da população brasileira. Faço, aqui, um convite à reflexão sobre o alcance do que está sendo decidido no País, neste momento.
Depois de destruir a Mãos Limpas, a Itália conseguiu um duplo recorde entre seus pares: detém o maior índice de corrupção e o menor crescimento econômico, e sabemos que esses dois fenômenos estão correlacionados. No terceiro trimestre de 2017 o produto interno bruto (PIB) da Itália ainda estava 6% abaixo do pico prévio, observado à época da crise econômica global, em 2008. No mesmo período, a zona do euro cresceu 5%; a França, 6,5%; e a Alemanha, 11%.
É surpreendente que entre 2000 e 2010 as taxas de investimento da Itália tenham oscilado entre 20% e 22% do PIB e seus investimentos públicos tenham superado os da Alemanha, da França e do Reino Unido. Não faltou investimento, a incapacidade de crescer foi provocada pelo comportamento da produtividade total dos fatores, que caminhava junto com as dos demais países da Europa; mas parou de crescer a partir de 1995 e começou a cair a partir de 2000 – em plena vigência de um ambicioso programa de investimentos em infraestrutura promovido por Silvio Berlusconi. Até 2016 a produtividade caiu 6%, enquanto a da França, a da Alemanha e a dos EUA cresceram 5,1%, 11,3% e 14,2%, respectivamente. É sabido que o mais importante efeito econômico da corrupção se dá sobre a produtividade, como demonstram importantes estudos recentes, como o de Luigi Zingales, dentre vários, baseados em extensa amostra de dados de empresas.
A Mãos Limpas foi destruída antes de completar três anos. As leis foram mudadas, dificultando a identificação e punição dos crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro, e houve um forte ataque difamatório aos integrantes da operação, pela mídia, sempre muito dependente dos recursos do Estado e de grandes grupos empresariais. Disso resultou impunidade para os crimes de corrupção e enorme descrédito no Judiciário, que perduram até hoje.
Quanto à impunidade, apesar de todas as medidas indicarem a presença de corrupção elevada, o número de crimes de corrupção que aparece nas estatísticas judiciárias italianas é menor do que o verificado na Finlândia, um dos países menos corruptos do mundo, indicando, conforme Piercamillo Davigo, que a cifra negra, isto é, a diferença entre os delitos ocorridos e os registrados, é enorme. Já quanto ao grau de independência das Cortes e dos juízes, a Itália recebe a pior avaliação dentre os países desenvolvidos da Europa: 57% do público em geral o considera muito ruim e ruim, enquanto na França e na Alemanha a proporção é de 37% e 16%, respectivamente. Dentre as razões para a falta de independência, 38% dos entrevistados a atribuem à “interface ou pressão de interesses econômicos ou de outro tipo” e 40% à “interferência ou pressão do governo e políticos” (Eurobarometer). O tempo médio necessário para resolver casos litigiosos da área civil e comercial, na primeira instância, era de 527 dias na Itália e de 190 na Alemanha, em 2015 (EU Scoreboard de 2017).
A qualidade das leis e a eficiência do sistema judiciário são fundamentais tanto para garantir o desenvolvimento sustentado dos países, como já mostraram Douglass North e Daron Acemoglu, como para determinar o seu grau de corrupção. Para Esposito et al (2014), “um sistema Judiciário eficiente e independente pode ser definido como aquele em que as decisões são tomadas em um tempo razoável, são previsíveis e eficientemente aplicadas, e onde os direitos individuais, incluindo direito de propriedade, são adequadamente protegidos”. Rose-Ackerman e Palikfa (2016) apontam que a independência e competência do Judiciário estão positivamente correlacionadas com níveis mais elevados de crescimento econômico, níveis mais baixos de corrupção, maior proteção aos direitos humanos e níveis mais elevados de liberdade política e econômica. Um Judiciário independente ajuda a limitar os desvios de fundos públicos para bolsos privados: em amostra com 144 países os autores encontram correlação de 0,83 entre essas duas variáveis.
Os dois “remédios” utilizados para abortar a Operação Mãos Limpas – a impunidade pela mudança das leis e a campanha de desmoralização da Justiça – levaram a Itália à estagnação. O país pagou parte do custo de desvendar a existência da corrupção sistêmica, mas optou por conviver com ela, deixando que o câncer progredisse, minando a saúde econômica, social e política do país.
Não bastam retórica e voluntarismo para promover o desenvolvimento econômico e social. É preciso aprender com os erros e acertos do passado. Desvendar a corrupção é a condição necessária, mas não suficiente para reduzi-la. Para tanto é preciso reconstruir as instituições que falharam em evitar que ela se instalasse, prejudicando a vítima difusa desse crime cruel, que é a população. Por ser um crime racional, é imprescindível elevar o custo da sua prática, aumentando a chance de punição dos seus praticantes. Por isso a possibilidade de prisão a partir do julgamento em segunda instância é crucial. Infelizmente, a reação da minoria privilegiada por anos de assalto aos cofres públicos parece haver encontrado o ponto fraco do nosso sistema imunológico, extraindo interpretações de leis su misura, que levam ao descrédito da Justiça sem a necessidade de campanhas difamatórias, como ocorreu na Itália. O resultado é o mesmo: perpetuação da impunidade, da corrupção e insegurança para a população e os investidores.
*ECONOMISTA