Roberto Macedo, O Estado de S.Paulo
Os termos moral e ética costumam ser intercambiáveis em discussões sobre o “bem e o mal” ou o “certo e o errado”. Mas certa vez ouvi de um filósofo uma importante diferença entre os dois, a de que a moral é um filtro individual e, como tal, sujeita a crenças pessoais, influenciadas de várias formas, como a religiosa, a familiar ou mesmo as casuísticas e, acrescento, as interesseiras. Já a ética tem como parâmetro o bem comum, avaliado num contexto social.
No portal da Enciclopédia Britânica é dito que (tradução) “muitas pessoas pensam que a moralidade é algo pessoal e normativo, enquanto que a ética diz respeito a padrões do ‘bem ou mal’ realçados por uma comunidade ou contexto social”. Esse é o meu enfoque. Não me deterei na moralidade do auxílio-moradia, nem de outros penduricalhos da remuneração de membros do Judiciário e do Ministério Público.
A remuneração deles e de outros servidores públicos está sujeita ao teto da Constituição (artigo 37, XI): “a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal (...).”
Hoje esse teto é de R$ 33,7 mil, mas muitos desses servidores ganham valores maiores em função dos tais penduricalhos. O mais conhecido é o auxílio-moradia, hoje de R$ 4.378 (!) por mês, mas há também auxílios-alimentação, saúde, transporte, educação e pré-escola, conforme levantamento do Conselho Nacional de Justiça, abrangendo 24 Estados. O do Rio tem essa lista completa, mas há também “parcela autônoma de equivalência”, em Rondônia, e gratificação de representação, no Tocantins.
O argumento de quem aprovou e/ou recebe benefícios como esses é o de que são indenizações e, assim, também favorecidas com isenção do Imposto de Renda (IR) e com o escape ao teto. Ora, no meu dicionário, e no senso comum da nossa sociedade, o conceito usual de indenização é o que se concede ou se obtém como reparação ou compensação de um prejuízo, perda, ofensa, etc., valendo também como compensação, recompensa, restituição.
Tome-se o auxílio-moradia. Como ajuda de custo, seria cabível por prazo determinado. Por exemplo, para um juiz encarregado de instalar nova comarca fora da cidade onde reside, exigindo a sua permanência lá até completar o seu trabalho. Se voltar à sua jurisdição original ou optar por lá ficar como juiz, a concessão desse auxílio deve ser interrompida. Mas o auxílio tem sido concedido a quem o solicitar, mesmo trabalhando onde reside, e até em duplicidade, se um casal de magistrados mora num mesmo imóvel.
Eticamente não interessa se quem recebe o auxílio tem casa própria ou não, sabendo-se que há quem opte pelo aluguel ou não tenha alternativa. Mas a ajuda de custo caberia apenas em prazo determinado, como na circunstância citada. É assim que a sociedade administra esse assunto e, portanto, é aético esse privilégio concedido em caráter generalizado aos servidores citados, e outros que o recebam dessa forma.
Aliás, quem deveria receber indenizações, e dos beneficiários desses auxílios, é a sociedade, que com seus tributos vem arcando com a conta do prejuízo, pois poderia ter mais serviços governamentais custeados pelo enorme volume de dinheiro envolvido. Aplicado dessa forma generalizada e permanente, o auxílio-moradia é de fato outra espécie remuneratória percebida cumulativamente, conforme o referido texto constitucional, e estaria sujeita ao IR e ao teto imposto pelo mesmo texto.
A “aeticidade” do auxílio recomenda sua extinção. A indenização é um eufemismo para um ganho salarial evidente. E até juízes de renome deixaram isso claro, como Sergio Moro, que admiro muito por seu trabalho à frente da Lava Jato. Segundo ele, o auxílio-moradia seria uma compensação pela ausência de reajustes salariais. Ora, entendido dessa forma, deveria ser contado entre os itens sujeitos ao teto e ao Imposto de Renda. Mas não deveria existir, cabendo, vale repetir, só como ajuda de custo conforme definida a seguir.
Também vi magistrados a defenderem o auxílio-moradia com base na Lei Complementar n.º 35, que no seu artigo 65, II, permite aos magistrados receberem, além dos vencimentos, “ajuda de custo, para moradia, nas localidades em que não houver residência oficial à disposição do Magistrado”. Mas o que é ajuda de custo? Meu dicionário, de novo refletindo entendimento comum entre os cidadãos, a define como assistência de caráter financeiro oferecida para serviços ou despesas extraordinárias, o que não é o caso do auxílio citado.
Esse auxílio, e outros que tais, são também aéticos, por serem antidemocráticos. Seus valores foram decididos pelos próprios interessados, sem atenção ao bem comum. Entendo que toda e qualquer remuneração de servidores públicos e seus valores deveriam ser, como o referido teto, referendados pelo Legislativo, e não definidos por seus próprios beneficiários. É ele que representa o povo e nossa Constituição diz que todo o poder dele emana e em seu nome será exercido, definindo assim o bem comum.
Soube que o Congresso está de olho no auxílio-moradia e noutros penduricalhos salariais, aguardando a decisão do STF para eventualmente impor seus próprios limites. Um deles deveria ser esse de impedir que funcionários públicos como os citados decidam sobre seus próprios rendimentos. Outro, o de eliminar os próprios penduricalhos do Congresso.
*Economista (UFMG, USP e Harvard), consultor econômico e de ensino superior