sexta-feira, 14 de abril de 2023

'A dura vida de um ex-', por Augusto Nunes

 

Ricardo Lewandowski despediu-se do Supremo Tribunal Federal | Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil


Lewandowski vai sentir muita falta da toga que transforma advogado em Supremo Juiz


No fim da sessão deste 11 de abril, o ministro Ricardo Lewandowski despediu-se do Supremo Tribunal Federal com duas frases. A primeira vale o mesmo que uma cédula de três reais: “Sempre entendi que os direitos fundamentais dos acusados devem prevalecer”. Mentira. Se pensasse assim, não teria endossado com repugnante euforia os sucessivos estupros do direito de ampla defesa e do devido processo legal consumados por integrantes da Corte nos últimos quatro anos. “Saio com a convicção de que cumpri a minha missão”, emendou no início da noite de quinta-feira. Verdade. Em 2006, ele ganhou uma vaga no Pretório Excelso para servir aos interesses da seita que tem num ex-presidiário seu único deus. Nos 17 anos seguintes, fez o que prometera sem hesitações e sem remorso. 

Lewandowski virou ministro do STF graças a uma rara combinação de acasos. Quando a vaga se abriu no começo de 2006, o presidente Lula e o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, não tinham candidatos. Quem tinha era a primeira-dama. Baseada no que lhe dissera do filho doutor uma antiga vizinha em São Bernardo do Campo, Marisa Letícia contou ao marido que Enrique Ricardo era uma sumidade como professor de Direito e desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Lula pediu a Bastos que examinasse a figura louvada pela mãe. Foi aprovado com louvor depois de dissertar sobre o Mensalão, primeiro grande escândalo da Era PT. Deixou claro que não conseguia enxergar nada de mais no monumento à corrupção institucionalizada. 

Ex-primeira-dama Marisa Letícia | Foto: Reprodução/Agência Brasil

O ministro da Justiça sabia que o presidente não estava interessado em encontrar algum jurista provido de notável saber e reputação ilibada, como a Constituição determina. Queria alguém que agisse no STF com a fidelidade de comparsa. Foi o que fez o já ministro Ricardo Lewandowski, em 28 de agosto de 2007, na sessão do Supremo que deliberou sobre a denúncia do procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, contra a quadrilha do Mensalão. 

O caçula do STF chegou ao restaurante às 9 e meia da noite de 28 de agosto de 2007, ansioso por conversar sobre o que o resto do Brasil ignorava. Por ampla maioria, o plenário endossou o parecer do relator Joaquim Barbosa e decidiu processar 40 envolvidos nas bandalheiras descobertas no ano anterior. Não viu no restaurante nenhum confidente confiável. Sem paciência para esperar sentado, Lewandowski deixou a acompanhante sozinha na mesa, foi para o jardim na parte externa, sacou o celular do bolso do terno e, sem desconfiar que havia uma repórter por perto, ligou para um certo Marcelo. Como o ministro não parou de caminhar enquanto falava, a jornalista não ouviu tudo o que disse durante a conversa de dez minutos. Mas as frases audíveis produziram um obsceno resumo da ópera. 

O procurador-geral da República, Antonio Fernando, participa da sessão que julga a denúncia do Ministério Público Federal (MPF) contra 40 pessoas acusadas de envolvimento no caso do Mensalão | Foto: José Cruz/ABr

“A tendência era amaciar para o Dirceu”, disse Lewandowski já na largada. Mas a direção dos ventos logo sofreu uma mudança, que atribuiu ao noticiário jornalístico. “A imprensa acuou o Supremo”, lastimou. “Todo mundo votou com a faca no pescoço.” Todo mundo menos ele: nem uma cimitarra sob o queixo conseguiria dissuadi-lo de amaciar para José Dirceu, acusado de “chefe da organização criminosa”. Só Lewandowski ─ contrariando o parecer de Joaquim Barbosa, a denúncia do procurador-geral e a catarata de evidências ─ discordou do enquadramento do ex-chefe da Casa Civil por formação de quadrilha. “Não ficou suficientemente comprovada a acusação”, alegou. A mesma fantasia animou-o a tentar resgatar também José Genoíno, e a divergir 12 vezes do voto de Joaquim Barbosa. “Foi até pouco”, gabou-se na conversa com Marcelo: “Tenha certeza disso. Eu estava tinindo nos cascos”. 

 Criativo ele é. Quando presidiu em companhia do senador Renan Calheiros a sessão do Congresso que aprovou o despejo de Dilma Rousseff, fatiou o impeachment de Dilma Rousseff para preservar os direitos políticos da presidente

Já tinia nos cascos desde a estreia em 16 de março de 2006. Primeiro ministro escolhido por Lula depois de lancetado o tumor do Mensalão, nem aprendera a equilibrar a toga nos ombros quando assimilou a pose de ph.D. em bandalheiras no Congresso. Promovido a revisor do voto do relator Joaquim Barbosa, comunicou à nação que os mensaleiros não seriam julgados antes de 2013. “Terei que fazer um voto paralelo”, explicou com o ar blasé de quem chupa um Chicabon. “Quando eu receber o processo, vou começar do zero.” O atraso resultaria na impunidade de alguns criminosos beneficiados pela prescrição dos prazos, mas o que se há de fazer? As leis brasileiras são assim. E assim deve agir um magistrado da linhagem garantista. 

Em dezembro de 2011, o relator surpreendeu o revisor com a entrega do relatório, acompanhado de todas as páginas do processo e do lembrete desmoralizante: “Os autos do processo, há mais de quatro anos, estão digitalizados e disponíveis eletronicamente na base de dados do Supremo Tribunal Federal”. Lewandowski fez o diabo para livrar da cadeia todo o exército de mensaleiros — dos generais aos estafetas. Como afirmou na conversa telefônica no restaurante em Brasília, teria consumado também essa tarefa se os demais ministros não ficassem tão sensatos quando lâminas imaginárias parecem roçar-lhes a carótida. Sempre tinindo nos cascos, seguiu protegendo amigos e perseguindo inimigos do homem que transformara em juiz do Supremo um advogado que nunca ousaria inscrever-se num concurso de ingresso na magistratura paulista. 

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O então ministro do STF, Joaquim Barbosa, durante o julgamento do Mensalão – 11/9/2012 | Foto: José Cruz/Agência Brasil

Formado pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, Lewandowski chegou ao Tribunal de Alçada por indicação do governador Orestes Quércia. Entrou no Tribunal de Justiça de São Paulo a bordo de uma esquisitice batizada de “quinto constitucional”, que reserva uma cota no mundo dos desembargadores a bacharéis com muitos amigos em tribunais. Aterrissou no Supremo por obra de uma boa mãe, uma primeira-dama e um presidente da República que só usaram livros de Direito para elevar a estatura do aparelho de televisão. Mas não quer aposentar-se de vez: perto dos 75 anos, renovou a carteirinha da OAB para continuar tinindo nos cascos como advogado. 

Criativo ele é. Quando presidiu em companhia do senador Renan Calheiros a sessão do Congresso que aprovou o despejo de Dilma Rousseff, fatiou o impeachment de Dilma Rousseff para preservar os direitos políticos da presidente. “Sem isso, ela não poderá trabalhar nem como merendeira”, alegou. (Debochar de uma mulher para defendê-la não é para qualquer um.) Ao perceber que ordens de prisão não bastavam para silenciar provocações dos demais passageiros, Lewandowski inventou o ofício de fiscal de nuvem. Entra no avião antes dos outros, senta-se na janelinha da primeira fileira e fixa os olhos no cortejo de formações cinzentas e flocos azuis. Melhor encarar uma cumulus nimbus que o berreiro dos descontentes majoritários. 

Ricardo Lewandowski presidiu, em companhia do senador Renan Calheiros, a sessão do Congresso que aprovou o impeachment de Dilma Rousseff | Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

O ex-ministro terá saudade dos assessores que o dispensam de carregar malas ou abrir portas, dos agentes de segurança que inibem provocadores, dos seminários no exterior, dos jantares adornados por lagostas do Maine e vinhos premiados. Mas nada lhe fará tanta falta quanto a toga que faz de quem a enverga um Supremo Juiz dotado de superpoderes sem paralelo mesmo no mundo dos super-heróis de cinema. Os togados são oniscientes, onipotentes e onipresentes. Mandam soltar sem explicações ou prender sem justificativas. Fazem o que lhes dá na telha, pouco importa o que dizem a lei, a Constituição, a moral e os bons costumes. Pouco interessa o que acham os não togados. São brasileiros comuns. Não contam. Lewandowski vai descobrir que um ex-togado é como um não togado. A partir de agora, aos olhos do Egrégio Plenário, o que pensa vale o mesmo que nada. 

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Revista Oeste