quinta-feira, 27 de abril de 2023

O Alvaro’s e os “Old Soldiers”, por Dante Coelho De Lima

 

“Oldier soldiers never die; they simply fade away “


Fica ali, no coração do Leblon. Número 500 da Avenida Ataulfo de Paiva, esquina da rua Cupertino Durão.

Neste mês de abril está completando 60 anos. O Alvaro’s abriu as portas em 1963, sob o comando do pernambucano Álvaro.

Ao longo dos anos, o Álvaro’s construiu uma reputação de um importante capítulo da história gastronômica do Rio. E muito dessa reputação se deve à fidelidade dos clientes assíduos, que sempre exaltam as ótimas opções do menu, a simpatia dos garçons e a excelência do atendimento, uma das marcas registradas do restaurante.

Para os fregueses daquela época, o bar e restaurante eram o local ideal para cafés, petiscos e aperitivos e um bom bate papo, além de oferecer deliciosas opções de comida caseira que ficaram famosas rapidamente na cidade e até hoje figuram o menu.

O tempo passou, mas pouca coisa mudou no Álvaro’s. O ambiente continua evocando um ar rústico, embora bastante acolhedor e convidativo. A sobriedade do recinto, assim como o menu, permanece praticamente inalterada desde a abertura da casa.

– Nunca fizemos mudanças nestes pratos do dia, assim como mantemos a canja de galinha e os pastéis, comenta Manolo Casal, o simpático espanhol da Galícia que em 1967 comprou a casa do Sr. Álvaro, em sociedade com o irmão Antônio.
– Somos um restaurante que reúne gerações de famílias. O avô trazia o pai, que trouxe o filho que hoje vem com os netos, ressaltou Manolo Casal.

Falando em avôs, o Álvaro’s é também o ponto de encontro de um grupo de Embaixadores aposentados, que lá se reúnem às segundas-feiras para almoço. Ali esses senhores que um dia foram Extraordinários e Plenipotenciários do Brasil perante soberanos e presidentes, cada um nas suas Pasárgadas funcionais, aninham suas asas já não tão vigorosas, qual aves condoreiras de voos não mais tão altos.

Sempre carinhosamente servidos pelo Manolo e pelo Pereira e sua equipe de garçons, esses bravos soldados trocam histórias de suas proezas profissionais, de suas missões espinhosas e gestões vitoriosas, de suas viagens e das vantagens que eles outrora tinham

Antes do Álvaro, esses velhos guerreiros, desarmados do “soft power” de que se valeram ao longo de suas carreiras, encontraram seu merecido pouso de descanso em outras renomadas casas de pasto do circuito gastronômico do Rio, como a tradicional Churrascaria Majórica, no Flamengo. E no Garden, ali no Jardim de Alah.

Por alguma razão, acabaram pousando no Álvaros’s, onde estão até hoje. Lá como cá, esses respeitáveis senhores se dedicam, em clima de franca camaradagem, a alegres e apimentadas tertúlias, um caso escabroso deste ou daquele colega sempre na ponta da língua. Entre outras coisas, discutem sobre a política interna e externa da Casa, o Itamaraty. Mas não só. Nem sempre prevalecia a unanimidade e por isso os debates são animados. To say the least. Mas nada que um bom gole de vinho ou um chope bem gelado não os tragam logo de volta às suas histórias de um certo colega que mantinha relações um pouco mais sociáveis com a esposa de um outro. Ou dos pileques de um terceiro que havia provocado situações no mínimo embaraçosas para a diplomacia brasileira, como aqueles protagonizados pelo folclórico Cônsul Soares de Pinna, o Pinna Gomalina. Aliás os apelidos também foram motivo para boas risadas, sobretudo porque no Itamaraty eles costumam ser muito criativos.

Com o passar do tempo foi-se dando uma natural renovação e alguns desses “old soldiers” foram encerrando seus ciclos de vida e simplesmente desvaneceram. E levando com eles histórias que eu queria continuar a ouvir. Mais recentemente, outros se afastaram por questões de saúde. Oxalá voltem em breve. Fazem falta.

Novos colegas aderiram ao grupo. Trouxeram consigo boa nova conversa, um sopro de novos ventos, renovado alimento além dos bons pastéis e bolinhos de bacalhau. Food for thought. Como deve ser.

Enquanto isso a gargalhada franca do Zé Alfredo continua a ecoar na nossa mesa, chamando a atenção dos outra comensais ao redor.

Quando me aposentei em 2013, já tinha ouvido falar do grupo, só não me lembro se seus membros já tinham o Álvaro’s como seu local de encontro. Desde logo quis muito me associar a alguma dessas confrarias de ex-colegas.

Por volta de 2016 fui generosamente admitido nessa egrégia irmandade. Ganhei bolas brancas na rigorosa avaliação dos próceres do grupo.

Orgulhoso, eu não faltava a nenhuma segunda-feira. Lá reencontrei velhos e bons amigos. Lá conheci colegas de outras gerações, de quem ouvi muito falar no curso da Carreira, mas que nunca os havia visto pessoalmente. Novas amizades.

E agora eis-me ali sentado ao lado deles, rapaz maduro encantado, ouvindo suas impagáveis histórias de memoráveis personagens da Casa).

Sempre gostei de ouvir histórias dos mais vividos e experientes. Desde quando menino travesso do garimpo de Pium, me deleitava em esgueirar-me, sorrateiro, entre as paredes toscas da nossa casa, a ouvir, trêmulo de emoção, e por vezes pavor, histórias dos adultos, histórias de índios e cangaceiros. E de almas do outro mundo. Dalí ia dormir agarrado à minha mãe e assombrado pelas imagens que aquelas histórias me inspiravam.
Mas, vamos parar por aqui com as memórias pessoais. Pois no Álvaro’s, nosso personagem de hoje, eram outros os contos. Histórias sempre picantes e hilariantes. Deliciosas.

Na mesa, a cabeceira é sempre ocupada pelo nosso Zé Alfredo. À sua esquerda instala-se o Armando Vitor, nosso Orson Wells cafuzo, com seu com seu olhar penetrante e suas tiradas de humor cáustico, quase sempre o motivo das gaitadas do amigo de tantos anos.

Um dia pretenderam, em boa iniciativa do Ruy Casaes, usar essa coisa que hoje chamam de rede social, como instrumento de comunicação do grupo. Deram-me, por alguma razão, o encargo de criar um grupo no WhatsApp. Assim o fiz.

Grande atividade no grupo do WhatsApp. Postagens de todo o gênero. Anúncios e comentários. Eu conto minhas estórias bobas que um dia haverão, quem sabe, de compor um improvável alfarrábio.

Que eu me lembre, apenas em quatro ocasiões os velhos soldados trocaram a segunda-feira do Alvaro’s por outro destino. Na primeira dela foram atraídos pelo anúncio de um promissor cabrito num restaurante da Lapa. Saíram de lá uns cabisbaixos, outros enfurecidos. Naquele dia o bom cabrito não berrou. Deu-se a “Cabritada malsucedida”, como diz o velho samba de Geraldo Pereira. Duas vezes, por iniciativa do saudoso Doutor Carlos (Carlos Eduardo Alves de Souza, o querido Didu), fomos convidados a nos reunir no restaurante do Hotel Fasano, onde sua filha era gerente. Uma última vez foi por ocasião de uma visita guiada ao Arquivo, Mapoteca e Biblioteca do Itamaraty, seguida de almoço no restaurante Málaga.

Eis que, como em todos os ajuntamentos sociais, a cizânia política fez estragos no nosso grupo no Álvaro’s. Deu-se um estremecimento entre amigos e colegas que pensam e sentem de modo diverso. Algumas suscetibilidades feridas. Alguns membros, amuados e abespinhados, deixaram momentaneamente de ir. Hão de voltar logo, tenho certeza. Pois fazem falta.

Vai passar, estou certo.

E seremos sempre o que sempre fomos: um grupo de colegas e amigos que se reúnem para uma boa tertúlia ao redor de uma mesa, como fizemos tantas vezes na nossa carreira.

Seja como for, para mim os almoços no Álvaro’s são parte essencial da minha semana. Já disse que, aposentado e de algibeira rasa, minha agenda social é mais monótona do que itinerário de elevador.

De minha parte, procuro ir lá sempre, pois lá me sinto feliz.

Seja como for, longa vida ao Álvaro’s, esse velho de 60 anos.

Dante Coelho de Lima é diplomata

Diário do Poder