Sistema de geração distribuída instalado em chácara na região de Maringá (PR): investimento que se paga em poucos anos e dura dezenas deles.| Foto: Divulgação
Quando a microempresária Maria Cristina do Nascimento precisou de uma alternativa para suprir os altos custos com energia na propriedade dela, na região de Maringá, noroeste do Paraná, a geração distribuída de energia com placas solares fotovoltaicas foi uma solução que, em poucos meses, se mostrou muito vantajosa. Dos R$ 2,5 mil mensais, a conta caiu para R$ 150.
“O projeto todo custou R$ 80 mil. Dei metade à vista e a outra metade estou pagando em 48 meses, em parcelas de mais ou menos R$ 2 mil por mês. Ou seja, menos do que eu gastava na minha conta de luz”, contabiliza. Se o investimento parece alto, só com essa conta de padeiro já se percebe que ele se paga, e rápido: em menos de três anos é possível tirar o custo da instalação. “E as placas continuarão aqui operando por muitos anos”, explica a empreendedora.
O sistema solar fotovoltaico de Maria Cristina é apenas um dos 1,7 milhão de sistemas de geração distribuída (GD) espalhados pelo Brasil, segundo mapeamento da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar), com dados de março de 2023.
Eles se conectam à rede das distribuidoras de energia locais para injetar o que geram e compensar o que consomem, como em um sistema de créditos, conforme a política de regulamentação da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). E como os projetos são pensados com base no consumo médio, muitas vezes os geradores basicamente pagam as taxas mínimas das empresas, além das tarifas de transporte de energia (o Fio B), no caso de novos acessantes (veja abaixo). Se consumirem a mais, caso não tenham créditos excedentes, daí sim pagam pela energia que vem da rede.
Esses micro e minigeradores, como são chamados, em geral produzem a própria energia em telhados, fachadas e pequenos terrenos, e ultrapassam a marca de 18 GW (gigawatts) de potência instalada, seja em residências, comércios, pequenas indústrias, propriedades rurais e prédios públicos brasileiros. Conforme os dados da Absolar, renderam investimentos que ultrapassam os R$ 92 bilhões. Os sistemas de geração distribuída estão presentes em 5,5 mil municípios brasileiros, sendo os estados líderes em potência instalada São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paraná e Mato Grosso.
Somada à energia solar centralizada, produzida em usinas maiores, a geração fotovoltaica no Brasil chega a 25 GW de potência instalada, com acúmulo de crescimento especialmente no último ano, quando o incremento foi de 64%. Segundo Ronaldo Koloszuk, presidente do Conselho de Administração da Absolar, o caminho para que esse desenvolvimento continue passa por políticas de incentivo e segurança legal. “Assim como investir em novas tecnologias, como hidrogênio verde e armazenamento energético”, exemplifica.
De fato, se gerar a própria energia é benéfico, ter acesso a ela quando a rede da distribuidora está indisponível seria perfeito – quando acaba a luz, de pouco adianta ser um gerador se a cessão da energia é feita pela rede. Mas essa realidade ainda caminha para ser, de fato, acessível
“Quando instalei o sistema, me informei sobre a possibilidade de adquirir também baterias (para armazenamento de energia excedente). Mas era muito caro, sairia praticamente o valor do sistema todo. E não daria para suprir tudo, somente poucas horas de abastecimento”, explica Maria Cristina.
Mudança na lei e corrida pelos projetos
A despeito do que ainda falta no quesito tecnologia para tornar os sistemas ainda mais baratos, ao menos alguns marcos legais instituídos na última década dão mais suporte a quem quer gerar energia. O primeiro deles foi a resolução 482/2012, que deu o primeiro incentivo para a instalação de sistemas de geração distribuída para micro e minigeração (a primeira se refere aos geradores com potência instalada até 75 quilowatts e a segunda, entre 76 kW e 5 MW).
A resolução permitiu, inclusive, gerar créditos de energia, que ainda não podem ser convertidos em pagamento ao gerador, mas que permitem que o excedente gerado abata um eventual consumo maior da energia que vem da distribuidora em meses subsequentes.
Dez anos depois, veio a lei 14.300/22, conhecida como o marco legal da micro e minigeração distribuída. Ela ficou conhecida como “lei da taxação do sol”, porque passou a cobrar dos geradores descentralizados um dos componentes das tarifas de distribuição e transmissão de energia (tusd), o Fio B, referente às despesas das concessionárias de energia elétrica para chegar até o consumidor.
Até então, a modalidade era isenta da taxa. O marco instituiu um prazo de carência de um ano após a validação da lei para a cobrança acontecer. Assim, quem já tivesse um sistema de geração ou apresentasse projetos até janeiro deste ano, ficaria isento da cobrança até 2045.
O resultado? Uma enxurrada de projetos apresentados para aprovação junto às distribuidoras. Embora desde outubro de 2022 tramite no Congresso projeto de lei (PL) 2703 que pretende estender o prazo para a inclusão da tarifa em seis meses, a nova lei foi suficiente para gerar uma demanda de 590 mil pedidos de conexão de GD durante o ano passado a distribuidoras de todo o Brasil, segundo a Aneel. Os pedidos somam uma potência instalada de 5,7 GW, calcula a Aneel, e representam 30% do total de conexões e potência instalada de todo o histórico registrado desde 2008.
O perfil do que vem por aí em geração distribuída
Para Aderbal Aragão Junior, diretor comercial da paulistana Comerc Renew, grupo que atua em negócios focados em fontes renováveis, entre eles a geração distribuída, muitos desses projetos não devem ser viabilizados. “Há empresas que cadastraram projetos para serem vendidos, outras que, em função do custo de capital, talvez não viabilizem as instalações. São alguns fatores que justificam que, talvez, 50% desse potencial seja de fato explorado”, estima.
“Cada vez mais o consumidor da GD deve ser o de menor porte, mesmo com a abertura do mercado (para a modalidade livre). Enquanto a geração (solar) centralizada deve focar mais no consumidor comercial e industrial, a distribuída vai atender o residencial e o pequeno comércio”, antevê Aragão Junior.
A Comerc é uma das que estão nesse rol, com planos de passar dos atuais 157 MW de potência instalada destinada à geração distribuída para 400 MW até 2024. Neste segmento, os investidores em geral atuam com fazendas solares de porte médio, trabalhando no esquema de geração distribuída compartilhada, também conhecida como energia por assinatura. Elas seguem a regulamentação de compensação de energia por GD e alocam várias unidades consumidoras em uma mesma usina, rateando as cotas.
É uma alternativa para atender pequenos consumidores que querem entrar para a geração distribuída, mas não dispõem de espaço para construir um sistema, ou ainda para clientes maiores, com perfil intermediário entre o mercado livre e o cativo.
E é nessa fatia de mercado que a paranaense Copel está investindo. “O consumidor está consciente sobre a necessidade de garantir na cadeia dele a energia renovável ou (é motivado) por uma busca mais direta de economia. A depender do estado e das condições, a redução na conta fica entre 8% e 22%”, calcula Cassio Santana, diretor de Desenvolvimento de Negócios da Copel.
A companhia, que agrega geração, distribuição e comercialização de energia, vive um momento de aproveitar a infraestrutura para o mercado da GD na modalidade compartilhada (vale lembrar que as compensações nessa modalidade devem obrigatoriamente se dar dentro da área de concessão das distribuidoras). “É um mercado ainda muito pulverizado. Enquanto a geração convencional tem 10, 12 grandes players, no mercado de GD tem mais de uma centena deles. Esse mercado vai sofrer consolidações mais à frente, por isso, vamos avaliar essa consolidação (para novas modalidades de investimentos)”, afirma.
A empresa mantém uma usina fotovoltaica nesse formato de operação, com capacidade instalada de 3 MWp (megawatt-pico, unidade de potência de energia fotovoltaica) e em vias de ampliação, o que totalizará 5,6 MWp até 2024. No caso desta usina, que funciona em Bandeirantes, município na região norte do Paraná, apenas um cliente compra toda a energia gerada. Já a distribuição das cotas da ampliação ainda será estudada. “Poderá ser juma geração mais compartilhada ou locar para um único cliente, o que diminui nossa gestão, mas atende menos gente. Mas é uma decisão puramente comercial, porque tem mercado para o que a gente quiser”, garante.
Ainda vale a pena?
As flutuações legais ainda estão por definir quem será mais impactado com as próximas delimitações sobre o destino da geração distribuída. O perfil mais representativo neste mercado é o dos geradores menores, como os residenciais, que compõem uma fatia de 80%. Os outros 20% são compostos pelos se enquadram em sistemas maiores, como os comerciais e industriais e os de compartilhamento de energia.
No caso da lei 14.300/2022, pode-se dizer que os consumidores menores estão em ligeira desvantagem. Um dos motivos é que a energia elétrica produzida por painéis fotovoltaicos, mesmo com o novo marco legal, quando consumida instantaneamente, continua não sendo taxada. A incidência do novo tributo ocorre apenas para a energia produzida e injetada na rede sob o regime de crédito a ser abatido da conta. Com a lei, um percentual desse crédito é retido pela concessionária a título de tributação.
“O comércio e a indústria normalmente estão em atividade durante o dia, exatamente no período em que as usinas fotovoltaicas estão em pleno funcionamento, e como esse consumo instantâneo não é taxado, o impacto é menor”, explica Lucas Tomaselli, diretor da Mepen Energia, que atua no fornecimento de usinas solares e sistemas de armazenamento. “Já as residências, que também geram energia durante o dia, mas normalmente o consumo maior é no período noturno, ficam mais dependentes do sistema de créditos que passou a ser taxado”, completa.
Além destes, os consumidores remotos também devem pagar mais. “O efeito dessa tarifação pode ser pequeno ou até zero se a geração e o consumo forem mais próximos. E, no sistema remoto, em nenhum momento a geração acontece no mesmo momento que o consumo”, explica o conselheiro e coordenador do grupo de Geração Distribuída da Absolar, Guilherme Susteras.
Mesmo assim, o investimento compensa, segundo os especialistas. A única diferença é que o retorno vai demorar um pouco mais. Segundo Lucas Tomaselli, dependendo do porte e tipo de consumidor, a recuperação do investimento em uma usina de energia fotovoltaica, o chamado payback, que até 2022 era de aproximadamente 4 anos, com o início da tributação passará a ser de 4,5 anos. “O que ainda é um resultado extraordinário, considerando a durabilidade dos painéis, que varia de 25 a 30 anos”, afirma.
Até o temido rateio dos custos do sistema entre um número menor de pessoas (ou seja, aqueles que permanecem comprando energia exclusivamente das distribuidoras) não sofrerá o impacto que se prevê com a disseminação da GD, segundo eles.
“A geração distribuída diminui a conta dos consumidores por conta do menor uso das termelétricas (que têm energia mais cara), redução de perdas, postergação de investimentos e isso se materializa com menos bandeiras tarifárias, reajustes menores, menos leilões de energia. As distribuidoras alegam que quando o consumidor gera sua própria energia, ele deixa de pagar um valor que é automaticamente distribuído pelos outros. De fato, são menos pessoas pagando, mas pagando um volume menor de recursos”, explica Susteras.
Sobre este aspecto, a Aneel aprovou em fevereiro passado uma resolução normativa que adequa o processo tarifário ao marco legal da GD, determinando a forma como inserir o custeio dos benefícios tarifários dos geradores na Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) e nos processos tarifários das distribuidoras.
“Agora falta que o CNPE (Conselho Nacional de Política Energética) diga as diretrizes dos cálculos dos benefícios da geração própria, que vão definir como a Aneel vai calcular as tarifas que vão ser aplicadas aos consumidores até 2029”, acrescenta o conselheiro da Absolar. O tema segue em consulta pública fechada e na dependência de o Ministério de Minas e Energia (MME) encaminhar seus resultados para o CNPE. As contas da Aneel serão feitas, então, sobre essas conclusões. “A discussão do cálculo de benefícios é importante justamente para demonstrar quão menos as outras pessoas estão pagando na conta total a ser rateada”, informa.
Caminhos para o armazenamento
Quanto mais a geração solar avança, mais barato ficam os equipamentos. E maiores também devem ser as alternativas de estoque de energia, um dos gaps que ainda existem para a GD. “À medida que a indústria desenvolve baterias para carros elas servem para as casas. Isso vai revolucionar o mercado e deve acontecer possivelmente ainda dentro dessa década”, acredita Guilherme Susteras.
Embora a aposta imediata sejam as baterias, novas tecnologias mais disruptivas surgirão, como o armazenamento em forma de hidrogênio verde. “A indústria do hidrogênio verde surge não só para armazenar energia, mas como forma de descarbonização de cadeias produtivas que dependem disso para zerar emissões. Por exemplo na siderurgia, ou na agricultura. A energia solar fotovoltaica é excelente caminho para produzir hidrogênio verde porque ela é muito flexível, podendo instalar os módulos onde vai se usar essa produção (de energia)”, explica.
Quanto à matéria-prima usada para os módulos fotovoltaicos, no começo da década se pensava que não haveria silício suficiente para sua produção. “Mas claramente essa profecia não se materializou. E existe estudo global da Irena (da sigla em inglês para Agência Internacional para Energias Renováveis) que mostra que as emissões do ciclo de vida do fotovoltaico são menores que qualquer outra fonte de energia e naturalmente positivas, ou seja, evitam mais emissões do que quando são produzidos. Além de os módulos serem 95% recicláveis”, finaliza Susteras.
Lígia Martoni, Gazeta do Povo