sexta-feira, 14 de abril de 2023

'A transposição sabotada', por Fernando de Castro

 

Canal do Eixo Norte do projeto de integração do Rio São Francisco, em Salgueiro, Pernambuco (22/3/2023) | Foto: Fernando de Castro/Revista Oeste


Um ano depois de inaugurada, a transposição do Rio São Francisco sofre com o desligamento de equipamentos, que causa a interrupção do fornecimento de água


Anovela envolvendo a transposição do Rio São Francisco não acabou em 2022, com a inauguração, por Jair Bolsonaro, de seu último trecho. Quase um ano depois de considerada enfim terminada, a obra agora sofre com o desligamento de bombas, o que afeta o fornecimento de água em regiões do sertão nordestino. 

Idealizada pela primeira vez em 1840, durante o império, a transposição começou a sair do papel em 2007, por decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na época, foi planejada a construção de 699 quilômetros de canais, número que foi temporariamente reduzido para 477 quilômetros no ano seguinte, por força de atrasos e pela pressa do governo petista em tentar entregar a obra até 2012 — o governo de Jair Bolsonaro, a transposição voltou a ter os 699 quilômetros originais.

Cerimônia de inauguração do Núcleo de Controle Operacional da Transposição do Rio São Francisco (8/2/2022) | Foto: Alan Santos/PR
Vista aérea do Eixo Norte do Rio São Francisco, na cerimônia de inauguração (8/2/2022), no Estado do Ceará | Foto: Alan Santos/PR

Inaugurada com dez anos de atraso, o orçamento saltou dos iniciais R$ 4,5 bilhões para quase R$ 15 bilhões — média de pouco mais de R$ 1 bilhão por ano, de 2008 a 2022. Neste meio-tempo, a construção foi interrompida várias vezes, por problemas de planejamento e denúncias de corrupção. Diversas irregularidades foram constatadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU).  

Em 2018, a inauguração da Estação de Bombeamento 3 (EBI-3), localizada em Salgueiro, no Estado de Pernambuco, marcou o início das operações do Eixo Norte. A estrutura é composta de bombas e válvulas que levam a água por canais e reservatórios até os Estados do Ceará, da Paraíba e do Rio Grande do Norte.  

“O que lamentamos em tudo isso é que já foram gastos quase R$ 15 bilhões nessa obra, para ela se encontrar numa situação de abandono” 

Um dos canais de irrigação que recebem água da EBI-3 é a Barragem de Jati (CE), que integra o chamado Cinturão das Águas do Ceará (CAC). Sua função é encaminhar os recursos hídricos disponibilizados pela transição até Riacho Seco, no município de Missão Velha, localizado no sul do Estado. Com 56 metros de altura, a estrutura, com capacidade de acumular até 28 milhões de metros cúbicos das águas oriundas da estação de bombeamento, Jati começou a funcionar em junho de 2020. Contudo, um rompimento ocorrido dois meses depois da inauguração, interrompeu  as operações até fevereiro de 2022. 

Barragem de Jati (CE) em pleno funcionamento, em 2022 | Foto: Alan Santos/PR

Em janeiro de 2023, contudo, as bombas que integram a EBI-3 foram desligadas, interrompendo o fornecimento de água para as barragens do Eixo Norte da transposição. O Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional assumiu a responsabilidade pelo desligamento, sob alegação de “anomalias” detectadas nos equipamentos. Apesar de os supostos problemas terem sido constatados em novembro de 2022, somente em janeiro deste ano houve a desativação do maquinário. 

Sem as águas da EBI-3, o cenário atual na Barragem de Jati é de terra abandonada. O mato cresce entre o cimento, a pouca água que ainda existe está represada e o concreto seco começou a rachar. 

Barragem de Jati (CE), em março de 2023 | Foto: Fernando de Castro/Revista Oeste


“Uma tragédia anunciada”
 

Para João Suassuna, engenheiro-agrônomo e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), o desligamento da Estação de Bombeamento 3, em Salgueiro, e a consequente falta de água na Barragem de Jati, no Ceará, são uma “tragédia anunciada.” 

Com livros e dezenas de artigos publicados sobre a transposição do Rio São Francisco, Suassuna explica que, sem água, a estrutura da barragem e dos canais será danificada. “A responsabilidade pelo desligamento dos equipamentos não é só do governo federal”, afirma Suassuna. “Os governos estaduais, que se comprometeram a assumir os custos de manutenção do projeto, inclusive os relacionados à água e à energia, agora optam por ignorar o abastecimento das águas oriundas da transposição.” 

Embora tenham se comprometido, os governadores agora alegam que não têm dinheiro. “O que lamentamos em tudo isso é que já foram gastos quase R$ 15 bilhões nessa obra, para ela se encontrar numa situação de abandono.” 

O engenheiro explica também que a falta de água pode provocar danos irreversíveis. “Os canais da transposição estão localizados no semiárido, uma região muito quente”, diz Suassuna. “Quando está com água, o canal se mantém numa temperatura razoável e constante. Se a água é retirada, como está acontecendo na Barragem de Jati, a estrutura de concreto esfria durante a noite e esquenta de uma maneira absurda durante o dia. O resultado dessa mudança brusca de temperatura é uma série de rachaduras na estrutura, que obrigarão à interrupção do funcionamento dos equipamentos e necessitarão de mais gastos públicos para reparos, com risco de perder toda a construção. É uma tragédia totalmente anunciada.” 

João Suassuna, engenheiro-agrônomo e especialista na transposição do Rio São Francisco | Foto: Fundaj

Com o desligamento da EBI-3, Suassuna confirma que todas as regiões contempladas com o abastecimento do Cinturão das Águas do Ceará são prejudicadas. Segundo o pesquisador, uma das únicas alternativas para o abastecimento, nesse caso, são as cisternas que captam as águas das chuvas. “É a salvação do povo, mas quem não tem cisterna fica numa situação difícil.”  

Posicionamentos sobre o tema 

Procurada por Oeste, Mônica Mariano, prefeita de Jati, afirmou que, embora o município abrigue a barragem, a prefeitura não tem qualquer controle sobre ela, e a cidade não tem autorização para irrigar a região com as águas da transposição. “Infelizmente, não temos nenhum controle sobre a gestão dela e de suas águas”, lamentou a prefeita. “O que estamos fazendo é buscar uma agenda direta com o governo federal, para mostrar a situação dos moradores de Jati, que não têm acesso à água, embora morem às margens de uma barragem gigantesca como essa.” 

Em nota, o Ministério do Desenvolvimento Regional confirmou as “anomalias” no funcionamento da EBI-3 e a paralisação do equipamento em janeiro deste ano. Embora não tenha explicado quais anomalias foram detectadas, a pasta garantiu que tudo estará normalizado em maio. 

O governo do Ceará reconheceu que a Barragem de Jati e Riacho Seco estão sem receber as águas do São Francisco. Apesar disso — e dos registros fotográficos enviados por Oeste comprovando a seca —, a Secretaria de Recursos Hídricos do Estado (SRH) alegou, em nota, que “a falta da água no local, neste momento, não compromete o abastecimento hídrico do Estado. De acordo com a pasta, a região está com boa pluviometria. “O Ceará está com a melhor reserva hídrica dos últimos dez anos”, garantiu a SRH. 

Diante das denúncias de fechamento das bombas, Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, autorizou a formação de uma comissão de parlamentares para fiscalizar os canais e as barragens da transposição e elaborar um relatório técnico sobre os impactos da paralisação dos equipamentos. A comissão, que não tem data para ir a campo, é composta de deputados federais dos Estados contemplados pela transposição. Os parlamentares pretendem cobrar do governo federal o retorno do funcionamento dos equipamentos.  

Até lá, o sertão nordestino continuará a enfrentar os mesmos problemas que assolam o local desde aquele longínquo 1840, quando a transposição era apenas um brilho nos olhos de Dom Pedro II. A falta d’água na região está longe de ter data para acabar. 

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Fernando de Castro, Revista Oeste