domingo, 21 de fevereiro de 2021

"Briga de rua", por J.R. Guzzo

O STF age como se estivesse salvando o Brasil; está apenas rolando na calçada com Silveira


O deputado federal Daniel Silveira não cometeu nenhum crime inafiançável, e muito menos em flagrante

Não cometeu crime inafiançável porque não torturou ninguém, não traficou drogas e não participou de nenhum ato terrorista. 

Não praticou qualquer ação armada contra a ordem legal, nem fez algum gesto racista. 

Não cometeu latrocínio, nem extorsão sob ameaça de morte, nem sequestro. 

Não estuprou, nem atentou contra o pudor. 

Não envenenou água potável. Não fez tentativa de genocídio. 

Em suma: não é autor de nenhum dos crimes que a lei relaciona como inafiançáveis, e que permitiriam a prisão em flagrante de um deputado – que tem, de qualquer jeito, de ser aprovada pela Câmara como acabou sendo, e por vasta maioria. 

É a única maneira de se prender um deputado no Brasil – não há outra. 

Isso é o que está escrito no artigo 53 da Constituição Federal, mas, no Brasil-2021, o que vale não é o que está escrito na Constituição, e sim o que está na cabeça dos 11 ministros do STF

Para eles, um vídeo em que o deputado detona uma carga concentrada de desaforos contra o STF é um “crime inafiançável”. 

E por que o flagrante, já que ele não foi detido pela polícia enquanto estava gravando? 

Os ministros apresentaram sua doutrina a respeito: um vídeo de internet é uma espécie de “flagrante perpétuo”, que não pode mais ser desmanchado depois que foi feita a gravação. 

O produtor do filme ...E o Vento Levou, por exemplo, poderia ser preso em flagrante se o STF julgasse que ele cometeu algum crime – racismo, talvez – na sua obra? 

O filme é de 1939, mas, se o flagrante é perpétuo, a “flagrância”, como dizem os juristas, teria de durar para sempre, não é mesmo? 

Eis aí onde estamos. 

Daniel Silveira
O deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), 
que teve a prisão confirmada pelo plenário 
da Câmara 
Foto: Dida Sampaio/Estadão (7/2/2019)

O que o deputado fez, na frente de todo mundo, foi um dos destampatórios mais primitivos jamais registrados na longa história de calamidades do Congresso Nacional, com ataques aos ministros e elogios ao AI-5 do regime militar. 

Mas, foi um discurso, e não outra coisa – quer dizer, palavrório e xingação de mãe, mas sem nenhum ato concreto ligado a nada do que disse. 

É o que se chama no dicionário de “opinião” – no caso, opinião grosseira e da pior qualidade. 

Mas grosseria não é crime, e sim falta de educação. 

A lei também não obriga ninguém a ter opiniões de boa qualidade, nem proíbe que um cidadão goste do AI-5; muita gente gosta, aliás. 

É motivo suficiente, isso sim, para o deputado receber da Comissão de Ética e do plenário da Câmara as punições mais pesadas que a lei permite: suspensão ou cassação do mandato, caso os colegas considerem que Silveira violou os seus deveres como parlamentar. 

É, por sinal, o que parte deles já está organizando. 

O STF, se a “separação de poderes” valesse alguma coisa – e os fatos mostram que ela está valendo cada vez menos –, não teria de prender ninguém, e sim pedir providências a quem de direito, ou seja, à própria Câmara dos Deputados. 

É estranho que se comporte, ao mesmo tempo, como vítima, polícia, promotor e juiz. 

Mais ainda, transforma em grave ameaça à democracia nacional um deputado que não tem liderança nenhuma no seu próprio partido, e muito menos na Câmara, que não chefia ninguém nem comanda organização alguma, armada ou não – um clássico criador de nadas, e não um perigo público que justifique o desrespeito à Constituição para ser contido. 

O STF age como se estivesse salvando o Brasil do abismo; está apenas rolando na calçada com Daniel Silveira. 

Esse tumulto acontece justo na hora em que o mesmo STF devolve o mandato ao senador pego (este sim, em flagrante) com R$ 33 mil escondidos na cueca

Mas aí é caso de ladroagem – e isso, no Brasil de hoje, não é problema.

O Estado de São Paulo