Somos fascinados, desde a nossa infância, por caçadas ao tesouro e sonhos de encontrar uma riqueza épica debaixo de nossos pés. Um dos grandes livros da minha adolescência foi A Ilha do Tesouro (Treasure Island), do escocês Robert L. Stevenson (1850-1894). É um empolgante romance vitoriano sobre piratas e perigos e mapas assinalados com um X. Foi uma das primeiras obras da minha vida que eu, literalmente, não conseguia largar.
Quero falar agora de um filme sobre tesouros. O lugar é Sutton Hoo, na histórica região de Suffolk, Inglaterra. Estamos às vésperas de estourar a Segunda Guerra Mundial. Em uma aristocrática propriedade, encontram-se montículos sabidamente artificiais, cuja origem se desconhece. A dona do local acredita que sejam túmulos antigos, talvez velhos o suficiente para serem de guerreiros vikings. Viúva e doente, decide realizar o sonho de infância (era filha de arqueólogo amador): escavar seu “quintal” em busca de valores de outros tempos. Contrata um arqueólogo autodidata para a empreitada. Ele contou com a ajuda de empregados da casa e do primo da proprietária.
Como toda escavação de vulto, ela oferece perigo e o arqueólogo contratado quase morre no processo. O túmulo antigo, por pouco, não sepulta um novo cadáver. Arduamente, toneladas de terra são removidas e indícios começam a aparecer. Madeira decomposta, rebites de metal muito enferrujados. Autoridades do museu local mostram-se pouco empolgadas. Talvez uma montanha de descartes apodrecidos pela água ao longo de séculos.
Então, novos contornos emergem. Aparece um antigo barco. O buraco passa a interessar ao poderoso Museu Britânico. Reforços são trazidos ao sítio arqueológico em meio às ameaças concretas de Hitler bombardear a Inglaterra. Descobre-se que a imensa embarcação (cuja madeira já fora consumida pelo tempo, deixando apenas seu frágil contorno no local) era funerária. E não se tratava de um enterro convencional, mas sim o de um rei ou poderoso guerreiro. Muito mais antigo que os vikings: era um suntuoso enterro anglo-saxão.
Naquela época, supunha-se que os anglos e saxões tinham vivido na “Era das Trevas”, um período que, erroneamente, se achava que a Idade Média tinha mergulhado no caos político, anarquia social e se mantido incapaz de produzir culturas sofisticadas. As estonteantes descobertas de Sutton Hoo virariam essa concepção do avesso. O barco, em si, era um atestado da imensa capacidade e do conhecimento de seus realizadores. Tinha quase 30 metros de ponta a ponta. Meça isso em sua casa: que linha é possível ser traçada de forma ininterrupta em sua propriedade? Se você consegue achar uma longa trena e medir 30 m contínuos em sua casa, alegre-se por ser um privilegiado! Mas esse exercício ajudará a entender a enormidade da medida. Trata-se da maior nau até então encontrada para esse período em toda a Europa.
No centro do barco, um enterramento faustoso. O esqueleto aparentemente sumira com a deterioração do tempo, mas seu escudo, armas, adereços corpóreos, joias e outros incontáveis objetos mostravam comércio de longa distância, metalurgia e ourivesaria originais. O achado mais icônico, contudo, foi um quebra-cabeça metálico que demorou anos e anos para ser remontado. Destruído pelo colapso da estrutura de madeira do barco, que despejou toneladas de terra sobre ele, o capacete da personagem (muitos acreditam ser do rei Rædwald) ali enterrada estava moído em dezenas de fragmentos. Refeito, revelou uma peça deslumbrante, poderosa, repleta de significados sobre os quais podemos apenas elucubrar.
A história acima é a base do enredo de um filme na Netflix, chamado A Escavação (dir.: Simon Stone, 2021), com excelentes atuações de Ralph Fiennes, na pele de Basil Brown, e de Carey Mulligan, como Edith Pretty. Como toda ficção, ainda que baseada em fatos reais, há liberdades criativas. Pretty é muito mais jovem no filme do que na vida real, o que talvez tenha sido feito para criar a tensão e atração com Brown. Ambos capitaneiam uma trama da qual os registros oficiais só os mencionam como obscuras notas de rodapé.
Personagens secundários poderosos deixam explorar temas como sexualidades reprimidas que também afloram da mesma escavação: da terra, saem tesouros e desejos. O filho da personagem de Mulligan, interpretado pelo simpático ator mirim Archie Barnes, fornece poéticos arcos narrativos com o lado astrônomo de Brown: ambos miram suas frustrações e sonhos no movimento das estrelas e sonham com mundos diferentes (um no passado e outro no futuro). A cena noturna com os personagens todos no barco é uma síntese de todas essas vidas e a vontade de que pudessem ser diferentes. Ao mesmo tempo que se aceitava que não poderiam existir de outra forma.
O ritmo lento do filme afasta o espectador que gosta de explosões e heróis fantasiados. Mas cria uma nostálgica empatia naqueles que buscam uma reflexão sobre outras fantasias e que reconhecem como os objetos do passado têm muitas vidas. O diretor do Museu Britânico, Neil MacGregor, já afirmou que nós temos uma biografia, os objetos têm muitas. Cada época lê no passado uma versão de si mesma.
O Estado de São Paulo