A insanidade do projeto que estabelece um novo zoneamento para a região do Araguaia
Aos 38 anos de idade, Mirela Picin planta soja e gergelim na região do Vale do Araguaia há mais de uma década. Os 6 mil hectares da fazenda também abrigam um portentoso rebanho bovino. Nos períodos de seca, a área de lavoura é ocupada pelo gado, que, na época chuvosa, fica em pastos plantados com Brachiaria humidicola e outras gramíneas. Como determina o Código Florestal, 35% das terras são ocupadas por reservas legais e permanecem devidamente preservadas. Há menos de um mês, Mirela descobriu que corre o risco de ser proibida de produzir em 100% do território que lhe pertence.
É o que acontecerá se o Zoneamento Socioeconômico Ecológico (ZSEE) de Mato Grosso for aprovado da maneira como está. Na teoria, o ZSEE tem como objetivo estabelecer medidas e padrões de proteção ambiental destinados a assegurar a qualidade ambiental, dos recursos hídricos e do solo e a conservação da biodiversidade, garantindo o desenvolvimento sustentável e a melhoria das condições de vida da população. Na prática, não é bem assim. As novas regras aplicadas à região do Vale do Araguaia, por exemplo, inviabilizarão a produção agrícola e a pecuária no local e farão com que centenas de pequenos, médios e grandes proprietários rurais percam o direito ao progresso.
Concebido em 1989, o documento ganhou sua versão final em 2009. No começo deste ano, sem nenhum alarde e sem justificativa alguma, o governo do Estado lançou uma consulta pública para discutir o projeto. Segundo o Diário de Cuiabá, até a data final de 16 de fevereiro, apenas duas dúzias de ambientalistas, estudantes, universitários e militantes sindicais haviam se manifestado. A participação insignificante da população e as críticas de parte do setor agropecuário fizeram com que fosse prorrogada por mais um mês. As mudanças atingem com especial rigor o Vale do Araguaia — que, pela falta de atenção que até então recebera do poder público, ficou conhecido como “Vale dos Esquecidos”. A região engloba 17 cidades e soma 4 milhões de hectares. Somente no município de São Félix do Araguaia, a safra 2021 produzirá cerca de 250 mil hectares de soja.
“Tal proposta é discutida nos bastidores, sem a participação efetiva de proprietários e produtores e, em plena pandemia, abre-se uma consulta pública, a toque de caixa, visando a legitimar a participação popular”, criticou a advogada Daniela Caetano de Brito, presidente do Sindicato Rural de São Félix do Araguaia. “É preciso grifar: mais de 90% das áreas afetadas são desprovidas de internet e 99% daqueles que tentam não conseguem acessar o sistema de consulta ou não respondem, devido à complexidade dos questionamentos e da formatação do programa.” Ou seja, não existe o diálogo daqueles que serão mais atingidos com o governo.
“O ZSEE determina que num amplo perímetro do Vale do Araguaia considerado ‘área úmida’ será permitida apenas a pesca, mas não se tolerará a piscicultura; a pecuária extensiva será aceita, mas jamais a pecuária tecnológica; e se impedirá qualquer prática da agricultura”, descreveu um parecer sobre o ZSEE, elaborado pelo engenheiro-agrônomo e ambientalista Xico Graziano a pedido do Sindicato Rural de São Félix do Araguaia. “Somente na antiga União Soviética e em Cuba o Estado pretendeu determinar o que pode e o que não pode ser produzido na sua economia agrária, tolhendo a liberdade individual e empresarial dos agricultores em se aproveitar do avanço tecnológico e das virtudes do mercado.” A criação de peixes em tanques de água, que seria proibida, é hoje uma importante atividade de subsistência para assentados da reforma agrária e proprietários de áreas mínimas de terra na região.
Por ter sido elaborada há mais de 20 anos, a proposta não leva em consideração o uso atual do território nem a tecnologia empregada nos dias de hoje. As terras ocupadas pela fazenda de Mirela e seu marido, Elder Moro Picin, por exemplo, apresentavam uma realidade completamente diferente duas décadas atrás. “Hoje, a agropecuária é altamente tecnológica e os conceitos de sustentabilidade e produção estão cada dia mais avançados”, contou Mirela. “É totalmente possível conciliar os dois, como fazem tantos produtores pelo Brasil. Temos áreas úmidas na região, mas as áreas altas são infinitamente maiores e altamente produtivas. As úmidas são usadas na época chuvosa para manejo do gado, mantendo preservada a vegetação nela existente.”
Daniela Brito acusa o ZSEE de ser anacrônico, sem base científica nem agronômica, e fundamentada em conceitos dissociados da realidade tecnológica atual. “Um exemplo disso é dissociar os pequenos produtores, a agricultura familiar e os assentados da agropecuária tecnificada”, observou. “Os pequenos produtores têm investido pesadamente em tecnologia para fazer suas propriedades produzir de forma sustentável e viável economicamente.” Para a advogada, o projeto, que se intitula “socioeconômico, ambiental e ecológico”, faz o caminho inverso. “Querem voltar a produção ao status quo ante, retirando da agropecuária qualquer tecnologia empregada e, pior, restringindo o uso de mais de 4 milhões de hectares, permitindo somente sua utilização para turismo, pesca e pecuária extensiva.” Num artigo publicado no site mato-grossense Olhar Direto, Luciano Vacari, diretor da Neo Agro Consultoria, fez a analogia perfeita: “O zoneamento tal como está é uma discussão sobre o futuro com base em uma fotografia tirada dez anos atrás”.
Para Graziano, a retomada da formulação de um ZSEE para Mato Grosso pelo atual governo é elogiável. Entretanto, ela deveria atualizar os cenários traçados em 2008, que ficaram distantes da realidade. “Ao desconsiderar o avanço tecnológico, por exemplo, o ZSEE acaba se tornando retrógrado em suas proposições”, explicou. “Todos os setores da agricultura e da pecuária passaram a incorporar tecnologias, modernizando seus processos de produção. Sendo assim, é impossível segmentar a agricultura brasileira entre ‘agricultura tecnificada’ e ‘agricultura familiar’, como se fossem tipologias opostas.”
Embora não haja no documento a definição exata do que é considerado “pecuária extensiva”, ela pode ser interpretada como aquela praticada sem o uso de gramíneas selecionadas, na qual o gado pode se alimentar apenas das espécies nativas e excluindo até mesmo o uso de sal mineral e ração. Pela interpretação do texto, poderia ser proibido também o piqueteamento das pastagens e a utilização de inseminação artificial. “Qualquer que seja a definição, significa que o ZSEE está impondo uma volta ao passado naquele pedaço do agro brasileiro, condenando milhares de produtores rurais ao atraso”, lamentou Graziano. “Isso é o oposto de sustentabilidade.”
Apesar de existirem trechos do Vale do Araguaia que se assemelham ao bioma do Pantanal, suas áreas frágeis são restritas e localizadas. “O ZSEE comete um exagero ao estender a restrição ao uso dessas terras baixas para um amplo território que inclui, na sua maioria, terras altas com formação típica do bioma cerrado”, observou Graziano. “Não está errado proteger as terras baixas. Equivocado é considerar terras altas de cerrado como zona úmida. Uma empulhação cometida por quem não conhece de perto a realidade do Vale do Araguaia.” O uso dos chamados varjões pela pecuária pode, inclusive, ocorrer sem causar danos ambientais. “Basta a ocupação estar assentada em práticas sustentáveis, como o plantio direto de pastagens melhoradas e o uso controlado de pesticidas”, ensinou Graziano.
Oparecer apresentado pelo agrônomo propõe que, em vez de condenar e punir, o ZSEE deveria consolidar as atividades produtivas existentes, mantendo com isso os investimentos já realizados. Depois de aprovado o ZSEE, regras específicas poderiam ser aplicadas às terras baixas a partir daquela data. Nas terras altas, a agropecuária continuaria a seguir as determinações do Código Florestal, que exige 35% de reserva legal.
Segundo Basílio Bezerra Guimarães dos Santos, secretário de Estado de Planejamento e Gestão de Mato Grosso, “o Zoneamento Socioeconômico Ecológico é uma definição legal e o Governo do Estado de Mato Grosso deve conduzir e apresentar o estudo à população”. Em nota bastante protocolar, o secretário limitou-se a dizer que o governo não quer “prejudicar o produtor e muito menos impedir o exercício da liberdade de uso de sua propriedade”, afirmou. “Por isso é importante a participação de todos contribuindo e ponderando para a construção do modelo mais adequado do ZSEE.”
Durante reunião envolvendo os Consórcios Regionais de Desenvolvimento Econômico e Social das regiões do Vale do Araguaia, o prefeito de Canarana, Fábio Farias (DEM), protestou afirmando que o governo não pode se submeter “ao capricho ou à paixão desenfreada de meia dúzia de ONGs”. Para outros, a tentativa de aprovação do ZSEE neste momento seria uma forma de transformar o Vale do Araguaia numa espécie de reserva ambiental, liberando outras regiões do Estado, dominadas por produtores rurais mais influentes, satisfazendo de certa forma o apetite voraz dos ambientalistas. Só isso explicaria o desconcertante silêncio de parlamentares e ruralistas.
“Hoje, para a esquerda em geral, para a classe média alta urbana que reza pelo ‘verde’ e, sobretudo, para milhares de burocratas que habitam a máquina pública, ‘aparelhada’ até o talo nos últimos anos, o inimigo público número 1 do Brasil e do povo brasileiro é o agricultor e o pecuarista”, escreveu o jornalista J. R. Guzzo, colunista de Oeste, num texto publicado na Gazeta do Povo. O mais novo ataque sofrido pelo setor seria justamente a tentativa de aprovação do ZSEE de Mato Grosso. “Um país está com problemas sérios quando quem precisa trabalhar no campo, e está dando uma contribuição vital à sociedade, tem de pedir licença para fazer o seu trabalho a burocratas que não foram eleitos por ninguém.”
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Branca Nunes e Edilson Salgueiro, Revista Oeste