Por essa ninguém no Brasil esperava. A manchete do Estado, no alto e à esquerda da primeira página, clamava em tipos grandes e gordos: Lava Jato pede a juíza que Lula passe ao regime semiaberto. O leitor, com sono, esfrega os olhos, vai à pia, escova os dentes, lava o roso e volta a ler. Só então acredita e começa a matutar: qual é a dos caras? Querem dar uma de bonzinhos e mostrar ao mundo que não fizeram injustiça nenhuma com o presidiário mais famoso do Brasil? Ou seria uma armadilha para paralisar a enxurrada de insinuações pingadas em gotas de veneno pelo site The Intercept Brasil, do pretenso jornalista ianque Glenn Greenwald, e assim, voltarem à vida normal sem os sobressaltos do noticiário dos sócios brasileiros deste, a Folha de S.Paulo, a BandNews e a Veja?
Nada disso. Os dias úteis voltaram e o coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba, Deltan Dallagnol, explicou a quem quisesse ouvi-lo que se tratava apenas de uma obediência irrestrita à lei. Em entrevista à Jovem Pan, na segunda 30, cedo, ele disse que o indigitado cumpriu a parte da pena que, obrigatoriamente, terá de ser no regime fechado e tem direito a progredir para o próximo. É um cálculo matemático, como sói acontecer com todas as penas. Lula foi condenado a nove anos e meio pelo ex-juiz da 13.ª Vara Criminal de Curitiba Sergio Moro. A defesa recorreu e a Quinta Turma do Tribunal Federal Regional da 4.ª Região, em Porto Alegre, aumentou-a para 12 anos e um mês. Novo recurso da defesa foi apreciado pela Oitava Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que confirmou a condenação (portanto, por oito a zero), mas refez os cálculos e a reduziu para oito anos e um mês. Cumprido um sexto da pena (no caso, um ano e cinco meses), o “paciente”, como registra o jurisdiquês, pode pedir para passar a cumpri-la no semiaberto. Ou seja, poderá trabalhar fora durante o dia e obrigatoriamente passar a noite num presídio. Mas o semiaberto é uma ficção jurídica tupiniquim, como explicou o filho do filósofo Miguel Reale, o também jurista Miguel Reale Júnior, que foi ministro da Justiça no governo Fernando Henrique e coautor da acusação do impeachment de Dilma Rousseff com Janaina Paschoal, em entrevista a este Blog do Nêumanne. É que não há presídios disponíveis para tantos condenados que passam para o semiaberto. E então, na prática, como ocorre com quaisquer condenados, Lula poderá passar direto para o aberto. Neste, trabalhará fora durante o dia e passará a noite em casa. E a Lava Jato está literalmente mandando o preso mais famoso do Brasil para casa. O problema é que ele não quer nem saber.
Só que não terá alternativa à decisão da juíza, seja ela qual for. Pelo menos foi o que Dallagnol explicou em sua entrevista. Segundo ele, o Ministério Público atua na acusação, mas também representa o Estado e, como tal, não pode permitir a um acusado escolher o regime pelo qual cumprirá sua pena. A explicação do procurador foi a de que o condenado tem o direito de pedir a progressão da pena, mas não pode negá-la. Porque o Estado não terá como explicar essa recusa às instâncias jurídicas superiores. Os procuradores indicaram à juíza a progressão de pena, dificilmente ela deixará de concedê-la e o condenado não pode recusá-la.
O desejo de Lula é ser absolvido, declarado inocente e ainda ver de camarote a condenação do ministro da Justiça, Sergio Moro, e do procurador Deltan Dallagnol por parcialidade na acusação e na sentença. E ficar livre de todos os processos – ainda faltam muitos a serem sentenciados –, disputar a eleição presidencial de 2022 com Bolsonaro, vencê-lo e, após assumir a Presidência, providenciar com os amigos do Judiciário a condenação e a prisão de Moro e Dallagnol. Padim Lula tem sido o rei dos spoilers a respeito dessa sua condição. Após ter recebido o pseudojornalista, que também se diz advogado, Glenn Greenwald na sala de estado-maior em que passou os primeiros 17 meses de sua pena, usou seus dons proféticos de sedutor de massas para dizer aos repórteres amigos Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, e Florestan Fernandes, de El País, que sua obsessão é desmoralizar o ex-juiz e o procurador. Agora ele teve outra premonição, ao afirmar que “seria um prazer” que ministro e procurador, dois inimigos figadais, entrassem no lugar dele na cela.
É isso mesmo que está sendo escrito: ele quer confirmar a inversão de valores com o bandido solto e o xerife e o delegado atrás das grades. Para isso precisará conseguir de seus amigões no STF e em outros tribunais superiores o cancelamento não de um, mas de todos os processos a que responde, e não são poucos. Nem todos os juízes serão benévolos como Ali Mazloum, que absolveu seu irmão, Frei Chico, e ele próprio praticamente in limine. Terá também de bater todos os outros pretendentes numa eleição em que seu partido, o PT, não conta em princípio nem com o apoio de outros líderes de esquerda, como Ciro Gomes, que tem a mesma obsessão que ele. E, sobretudo, convencer o eleitor a votar num candidato condenado em três instâncias, por corrupção, lavagem de dinheiro e mais uma miríade de delitos. Ultrapassar todos esses evidentes obstáculos pode não ser fácil nem mesmo para um migrante que saiu da escassez para a abundância no prazo curto de uma vida. Parecerá insensatez, mas quem o conheceu na metade do caminho, no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, hoje do ABC, sabe que essa subida já foi mais íngreme. Portanto, não é prudente menosprezar a megalomania de um operário braçal que passou quase 14 anos no poder maior…
O que Lula conseguiu com seus compadritos até agora já pode ser considerado miraculoso. Conta desde já com o absurdo de um sistema jurídico que condena em três instâncias um delinquente a quase 11 anos de cadeia e lá só passa um ano e cinco meses. Depois, manobrando a ousadia e a covardia de outros cúmplices, jogou areia nos olhos da multidão com a divulgação a conta-gotas de insinuações que viram denúncias, obtidas de supostas mensagens manipuladas por um egresso dos esgotos da pornografia de Nova York, transformando-o num herói da liberdade de imprensa. Agora o condenado que nunca foi para o inferno presidiário brasileiro e vive a detratar agentes da lei, alguns dos quais heróis do povo, arvora-se a comandar a própria soltura.
Tudo foi minuciosamente planejado e está sendo cumprido à risca. Seus empregadinhos no Congresso já aprovaram em votações simbólicas, das quais apenas os líderes da miríade de bancadas de ínfimo número de membros participaram, uma lei contra abuso de autoridade, que já está, conforme o noticiário registra desde já, coagindo juízes, promotores e policiais a seguirem as novas normas de conduta e deixarem à vontade criminosos de todos os gêneros, espalhando o terror e a desordem. A esquerda sem votos e o Centrão sem escrúpulos, com a muda cumplicidade de Jair Messias Bolsonaro, dão dinheiro e poder aos chefões das organizações criminosas partidárias. Tudo dentro do plano.
Para completar, com a adesão de Cármen Lúcia, Rosa Weber e Alexandre de Moraes, o Supremo Tribunal Federal (STF) prepara-se não para interpretar, mas para corrigir a Constituição, transformando “não considerar culpado” em “não prender” para derrubar a jurisprudência da transferência da autorização para soltar condenado da segunda instância (leia-se colegiado) para as calendas gregas do “transitado em julgado”.
Por enquanto, só poderão impedir esse plano o amor do povo ainda devotado a Moro e Dallagnol e, sobretudo, a eficiência da Polícia Federal na investigação sobre os “arararraquers” (genial neologismo criado pela coleguinha Cora Rónai). A complicada estratégia lulista de soltar os bandidões e mandar para suas celas (não a dele, que é privilégio de poderoso chefão) os agentes honestos, inteligentes, judiciosos e trabalhadores da lei também é ameaçada pela empáfia de seus operadores.
A réstea de esperança que surge entre as telhas vem da informação de que os bandidos de Araraquara que invadiram os celulares de quase mil autoridades no Brasil se acreditavam infalíveis. Walter Delgatti, o Vermelho, deu a senha. A Polícia Federal usou como antídoto dose do veneno que ele vendeu, ao ler mensagens trocadas com seus cúmplices, com autorização do juiz. Numa, um destes temeu que o pedido de férias do ministro da Justiça e da Segurança Pública pudesse representar risco.
“(Moro) descobriu algo será?”, indagou o outro.
“Ele (Moro) tá com medo, isso sim. Hacker aqui não deixa rastros. Hacker de hacker. Você não entendeu ainda. Quem nasceu para ser crash-overlong nunca vai ser hacker aqui”, respondeu Vermelho
Felizmente, não foi bem assim.
*Jornalista, poeta e escritor
José Nêumanne, O Estado de São Paulo