Essas remunerações governamentais não são justas nem eficientes economicamente
O papel é o texto constitucional, a “Lei Maior”, tratada como menor no processo que leva aos supersalários no setor público. Reli o inciso que “impõe” esse “teto”. Integra o artigo 37, e raramente é transcrito integralmente pela imprensa, pois toma muito espaço.
Optei por tomar 19% do meu e aí vai, realçados aspectos tão relevantes como inoperantes: “XI - a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como limite, nos Municípios, o subsídio do Prefeito, e nos Estados e no Distrito Federal, o subsídio mensal do Governador no âmbito do Poder Executivo, o subsídio dos Deputados Estaduais e Distritais no âmbito do Poder Legislativo e o subsídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Poder Judiciário, aplicável este limite aos membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos”. O valor mensal e atual do “teto” é de R$ 33.763,00.
Recente e felizmente, o assunto ganhou maior espaço no noticiário. E por uma surpresa, a iniciativa do presidente do Senado, Renan Calheiros, de criar uma comissão especial para tratar dos supersalários do Judiciário e do Ministério Público.
Eis algumas notícias.
1) A revista IstoÉ (23/11) aponta que o Brasil tem 18.487 juízes e procuradores de Justiça, dos quais 13.790 ganham acima desse “teto”, com o salário médio de cada juiz alcançando R$ 46 mil. O Estado do Rio de Janeiro, que se destaca no noticiário sobre o assunto, bem como no de seu estado falimentar, em 2017 deverá gastar R$ 2,1 bilhões em privilégios de membros do seu Tribunal de Justiça, do Ministério Público estadual, do Tribunal de Contas e do Poder Executivo; em São Paulo, em 2015, esse dispêndio ficou em R$ 413 milhões.
2) No jornal O Globo, e de novo sobre o Estado do Rio: Mais de 98% dos magistrados e promotores da Justiça estadual ganham acima do teto. Em 27/11, no mesmo jornal: Pelo menos 10 senadores se beneficiam de supersalários – com foto do senador Lobão, numa coincidência de superlativos.
3) Num alento, em 26/11 o Estadão noticiou que a Justiça Federal impôs o teto ao senador Agripino Maia, que acumula seu salário no Senado com uma estranha pensão como ex-governador do Rio Grande do Norte – estranha em face da curta duração do mandato –, totalizando R$ 64 mil por mês.
4) Em 18/11 a Procuradoria-Geral do Estado do Rio transformou em auxílio-educação o auxílio-creche dos seus servidores, de R$ 900 (!) por mês, estendendo-o a filhos de até 24 anos (!), quando antes era para até 6 anos. No mesmo dia a mudança foi revogada por outro signatário.
Este último caso ilustra bem a forma como são tomadas decisões arbitrárias quanto a adicionais sem justificativa aceitável, sem passar pelo Poder Legislativo, tomadas apenas no âmbito corporativo. E há outras, conforme listadas pela mesma IstoÉ: “(...) auxílio-moradia para quem inclusive já possui imóvel próprio, carro com motorista, cota de gasolina, auxílio-alimentação, de transporte, plano de saúde (...), dinheiro para a compra de livros e computadores, pagamento de até cinco salários mínimos para quem adota uma criança, extras para quem dá aulas (...)”. Em função de adendos como esses, dois desembargadores do Tribunal Federal Regional do Rio “receberam mais de R$ 200 mil (!) em abril de 2015”.
O auxílio-residência é emblemático da sua impropriedade. Por que é pago só a alguns privilegiados? Não defendo sua extensão em geral, pois apenas seria cabível a servidores em missões extraordinárias por prazo limitado em locais distantes da cidade de domicílio usual.
Além de decisões corporativas em causa própria, há ainda a acumulação de salários com aposentadorias ou pensões. Defendendo-se, alegou o senador Agripino Maia que “a legislação brasileira não é explícita sobre a (...) remuneração de duas fontes, uma federal e outra estadual”. Vejo o referido inciso constitucional como explícito quanto a esse assunto. E ele não diz que depende de regulamentação.
Na remuneração criteriosa de servidores públicos continuamos atrasadíssimos. Os governos, nos seus vários níveis, não dispõem de divisões ou departamentos de recursos humanos dignos do nome. Aliás, o caput do artigo citado diz que “a administração pública (...) obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...)”. Há palavras mortas nesse trecho.
A propósito, olhei a forma como os servidores civis federais são remunerados nos Estados Unidos, o que obedece a uma escala de cargos com progressão dentro deles, cujos ganhos dependem de pesquisas salariais anuais no mercado de trabalho que exclui esses servidores (https://www.opm.gov/policy-data-oversight/pay-leave/salaries-wages/fact-sheets/#url=bls-data). Aqui, as remunerações são decididas sem essas pesquisas, sendo em média bem mais altas do que as encontradas no mercado, mesmo sem contar privilégios em termos de aposentadorias, pensões e outros benefícios.
Ulysses Guimarães, condutor do processo legislativo que levou à Constituição de 1988, disse certa vez: “Só é cidadão quem ganha justo e eficiente salário (...)”. Ora, os supersalários governamentais não são nem justos, nem eficientes economicamente.