sábado, 31 de dezembro de 2016

Leonardo Padura: "Por que escrevo romances noir?"

Folha de São Paulo


Quando um jornalista me pergunta qual será o futuro de Cuba ou quanto Cuba vai mudar nos próximos anos, ou, na versão mais recente, como será Cuba sem Fidel, lamento o estado de calamidade de um jornalismo (ou será o de apenas alguns jornalistas?) que toma os escritores por adivinhos e procura resolver sua missão do modo mais pedestre.

O curioso é que perguntas desse tipo se repetem com frequência alarmante nas muitas entrevistas que dou por ano, há vários anos, e, embora a realidade cubana tenha demonstrado seus altos graus de previsibilidade e imprevisibilidade (tudo ao mesmo tempo) e eu, minha incapacidade de vislumbrar o futuro, a persistência da interrogação demonstra que para esses jornalistas importa mais o que um escritor possa especular do que o que escreve.

Renata Borges/Renata Borges/Editoria de Arte/Folhapress


Por isso chego a me sentir feliz e realizado quando um jornalista me pergunta por que escrevo romances noir. Algo tão simples e preciso, mas tão fundamentado em uma evidência –oito romances– e em uma singularidade –que apenas eu posso explicar por que escrevo de uma forma e não de outra, um assunto e não outro.

O romance noir, ou policial, ou detetivesco, é há décadas um gênero ou tipo de literatura considerado popular e menor. Cultura de massas. Nas últimas décadas, porém, até a academia mais rançosa e elitista vem sendo obrigada a aceitar sua pertinência e também a reconhecer sua qualidade artística. E não precisamente porque as academias sejam compreensivas e abertas, mas porque o romance noir ganhou um espaço literário e social no âmbito da cultura (e não apenas da de massas) da pós-modernidade.

Obras de grande valor estético e de aguda reflexão sobre uma realidade, criadas por autores de nomes adornados com prestígio, prêmios, sensibilidade literária e social contribuíram para a concretização desse processo. Umberto Eco e Leonardo Sciascia, na Itália; Rubem Fonseca, no Brasil; Manuel Vázquez Montalbán, na Espanha; Henning Mankell, na Suécia, Benjamin Black, na Irlanda, fazem parte de uma lista cada vez mais longa e poderosa de escritores que conquistaram todo ou parte de seu reconhecimento escrevendo romances policiais (ou quase policiais) e conferiram ao gênero qualidade literária, capacidade de penetração social e, com isso, respeitabilidade artística e cultural.

Para a maioria desses autores, o impulso que os levou a escrever romances policiais parte de duas condições: a grande capacidade que possui esse gênero de romance de expressar os mais diversos e obscuros conflitos de uma sociedade, e sua generosidade estética como forma de expressão aberta a todas as experimentações e todos os aprofundamentos literários possíveis.

O resultado de tais qualidades tem sido que, ao lado de uma novelística policial que continua apegada aos recursos fáceis da criação de um mistério atraente, foi se criando um corpo literário sólido e cada vez mais prestigioso, que participa ativa e às vezes decisivamente da criação de uma imagem próxima a das sociedades em que vivemos.

A recorrência a assuntos tão complexos e polissêmicos como a corrupção, o medo, a violência, o tráfico de drogas e pessoas, o crime organizado, a degradação da política (e dos políticos) e o jogo de influências, a prostituição e o proxenetismo, o comércio de armas, o crime de Estado e a marginalidade, entre outras realidades de peso crescente no mundo contemporâneo, vem permitindo ao romance policial não apenas participar do jogo social e alcançar qualidade literária, senão, também e sobretudo, converter-se em um dos recursos mais ágeis e eficazes para refletir a decadência de um mundo ou, pelo menos, suas dores mais agudas.

Por isso, quando me colocam na função de oráculo e me perguntam como será Cuba no futuro, sempre respondo que não sei. Apenas presumo que será algo diferente do que é hoje, pela simples questão de acreditar na dialética, no desenvolvimento, na evolução. Em contrapartida, quando me pressionam para falar de minha preferência pelo romance noir, lanço mão de todos os argumentos acima anotados e acrescento mais um: porque gosto de contar histórias que tenham princípio e fim, em que aconteçam coisas capazes de interessar ao leitor e nas quais, diante de tanta falta de justiça e verdade nas sociedades contemporâneas, haja um pouco de senso de justiça, algo que sempre é reconfortante.

Por isso escrevo romances policiais... e com certeza por isso, você, leitor, também lê romances policiais, inclusive nestes dias de festas com que encerramos um ano dramático e nos aproximamos de outro que pode ser terrível... Se bem que eu ainda não saiba como nem quanto!

Tradução de CLARA ALLAIN