Para o filósofo, Temer é um liberal porque o núcleo duro do seu governo é a ampliação das liberdades econômicas
O governo Temer não é uma colcha oportunista de retalhos, como pode parecer aos desavisados. Não, o governo Temer tem uma face razoavelmente coerente com o que se pode chamar de uma versão brasileira do que se denomina tradição “liberal-conservative” (liberal-conservadora). O problema é que no Brasil pós-ditadura, por ação organizada da esquerda nas universidade e nos agentes produtores de conteúdo, quase ninguém sabe o que seja isso. O Brasil é ignorante em metade do que seria a filosofia política produzida desde o século XVII pra cá. Só conhecemos o caminho da roça deHegel, Marx e Foucault.
Nos últimos tempos fala-se muito de polarização e agressividade entre as pessoas quando se fala de política. Acho engraçado esse mimimi. Discussão política quando é pra valer é uma discussão sobre o poder e todo mundo quer o poder.
Claro que existem limites para um bom convívio no macarrão de domingo na casa da avó, inclusive saber que macarrão da avó é sempre mais importante do que política. Antes de tudo, porque a avó é nossa ancestral e nos entregou um mundo pra viver. Será que nós, com todas as nossas ideias mirabolantes de como o “mundo melhor” deve ser, seremos capaz de fazer o mesmo para nossos descendentes? Eis uma pergunta típica da tradição liberal-conservadora da qual o governo Temer se aproxima.
Esta tradição britânica de pensamento político que data de meados do século XVII tem sua raiz num profundo ceticismo acerca da capacidade humana de “inventar” muita coisa que preste em política. Mudanças, apenas pontuais e para resolver problemas concretos, jamais mudanças a partir da ideia de um “mundo melhor” que alguém tem na cabeça. Os socialistas são grandes criadores de “teorias de gabinete”, teorias que aparecem na cabeça deles e eles acham que todo mundo deve aceitá-las. Os socialistas acham que sabem tudo para sermos felizes, um conservador acha melhor perguntar pra quem já viveu mais.
Para um conservador, é melhor levar sempre em conta a experiência passada antes de embarcar em delírios dos “movimento sociais” (por isso, muitas vezes, vai bem quando temperado com religião como moderadora dos comportamentos, como sempre foi). Em política, conservador e cético são sinônimos. Você sabia disso? Duvido. Provavelmente, quando se fala em conservador vem na sua cabeça gente horrorosa escravocrata, malvada, torturadora e que não se preocupa com o mundo. Não, um conservador em filosofia política é um cético. Mas, a culpa não é de toda sua. Já volto nesse assunto pra dizer de quem é a culpa por nossa ignorância em matéria de filosofia política que vá além da roça do Marx.
Um liberal-conservador mescla esse ceticismo para com ideias mirabolantes (o “conservador” aqui é o cético) com uma crença na sociedade de mercado. E a crença na sociedade de mercado se deve a percepção de que o comércio é uma atividade ancestral na vida humana e responsável pelo enriquecimento da humanidade nos últimos 250 anos. Com o comércio vem ideias, dinheiro, oportunidades, tolerância cultural (basta você pagar a fatura do Visa), enfim, a democracia que conhecemos e que os socialistas vivem querendo roubar para os seu gabinetes.
Há mais um fator (além de política e economia) nesse termo liberal-conservador: a moral e os costumes. Os liberais sempre foram mais tolerantes com relação a comportamentos menos “tradicionais”, fruto mesmo da atividade de mercado. Basta ver a “revolução gay” que a publicidade criou ao descobrir a “grana gay”. A própria liberdade religiosa é fruto da posição liberal. No caso do governo Temer, a questão dos costumes (apesar dele Temer ser mais liberal do que parte da sua bancada) pode sofrer mais pressão de posições não liberais e mais conservadoras (religiosas) devido a bancada parlamentar. Mas, o núcleo duro do seu governo é esse “deslize” filosófico entre duvidar da parafernália teórica de um PT, preservar certos procedimentos “antigos” em política profissional e de costumes, e ampliar liberdades econômicas. Logo, Temer é a versão nacional de um político “liberal-conservative” a mão.
Mas e a ignorância de que falava antes? Explico: a grande vítima da ditadura em termos de projeto político para o país foram os liberais e não a esquerda. Pessoas da esquerda foram torturadas e isso é sempre uma tragédia. Mas, a esquerda saiu da ditadura vencedora nas universidades, na mídia, na arte, na cultura, na política e com pose de santa. O único grande partido pós-ditadura foi o PT. Se você sonhasse em dizer que era de direita (no sentido de ser liberal e a favor da economia de mercado e contra esse paspalhão que é o Estado brasileiro), todos iriam pensar que você era louco, torturador, comedor de criancinhas, assassino. Nada de convites para jantar nem aprovações em concursos das universidades ou vitórias em editais culturais.
E ninguém nunca disse isso pra você? Simplesmente porque quem conta a história do Brasil sobre o período pós-ditadura mente. A esquerda não foi vítima da ditadura como projeto de poder, foi a vitoriosa. A ditadura brasileira foi um instrumento dos EUA pra barrar o avanço socialista na América Latina no contexto da guerra fria. Por isso a esquerda fez a guerrilha para levar o Brasil pra uma ditadura de esquerda em meio a guerra fria. Mas, como a ditadura era pró-EUA, ela deixou a impressão de que se você é a favor do mercado, você é a favor da tortura. Pura falácia. Logo, desapareceu do “mercado de ideias” a reflexão liberal.
A mancha ficou: quem é liberal seria a favor da tortura. A esquerda, “honesta” como sempre, mantém essa mentira porque serve pra continuar a preservar a grande ignorância brasileira acerca da política, e a reserva de mercado das ideias pra ela, junto com os empregos associado a essa reserva.
Por isso, muita gente não consegue ver a coerência (sempre limitada e imperfeita, como tudo que é humano e político) do governo Temer e sua virada liberal-conservadora. É necessário aprendermos dar nomes aos bois. É necessário ir além da roça do Marx.
LUIZ FELIPE PONDÉ é filósofo, escritor e ensaísta, com pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv.