quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

"A história do Lucas", por Mara Gabrili

O Estado de São Paulo



Mara Gabrilli. Foto: Arquivo Pessoal
Hoje é o Dia Mundial das Doenças Raras. Uma oportunidade para fazermos um panorama sobre avanços e retrocessos nas políticas públicas no Brasil.
Há alguns anos, conheci a história do Lucas Costa, um garoto de cinco anos que sofria da epidermólise bolhosa, doença grave e ainda sem cura responsável pela formação de sérias bolhas pelo corpo – em casos mais severos também em órgãos internos. A EB, como é conhecida, é considerada uma doença rara dada sua baixa incidência. No mundo, estima-se a ocorrência de 50 casos para cada 1 milhão de nascidos. No Brasil, a estimativa é de 700 afetados.
Sem poder contar com uma diretriz de tratamento ou medicação eficaz que impeça a formação das bolhas, a família de Lucas, que é de Montes Claros, interior de Minas Gerais, dispunha de um esforço enorme para viajar frequentemente a São Paulo e ter acesso às pomadas e curativos específicos (feitos de silicone) para tratar os ferimentos da criança.
Segundo os pais, os medicamentos, quando disponibilizados pelo Estado, só chegam por via de ação judicial.
A família vivia em meio a um limbo de políticas públicas e, principalmente, de informação específica sobre como viver com qualidade com a EB.
Passados alguns anos, a história de Lucas – hoje com 8 anos – continua servindo de recorte para a realidade de aproximadamente 13 milhões de brasileiros que sofrem de uma doença rara. O número, aliás, é superior ao de toda a população de São Paulo.
Mesmo com uma demanda tão expressiva, o Brasil não conta hoje com uma política nacional que resguarde de fato quem sofre de uma doença rara.
Como já falei aqui, o Sistema Único de Saúde atende essa população de maneira fragmentada, pois muitas dessas patologias – 80% de origem genética, como é o caso da epidermólise -, não estão inseridas em nenhum protocolo.
Além disso, 95% das doenças raras não possuem medicamentos específicos e as pessoas dependem de uma rede de cuidados paliativos bem estruturada, que assegure uma melhor qualidade de vida.
Uma realidade muito distante, já que a escassez de geneticistas e a falta de centros de referência impedem muitas vezes que esses pacientes busquem qualquer tipo de tratamento.
Atualmente, em todo o País, há cerca de 200 geneticistas – um para 1,25 milhão de pessoas.
Ainda, de acordo com o próprio Ministério da Saúde, o Brasil dispõe de apenas sete centros de referência em todo o País. E não se sabe quantos profissionais de saúde foram capacitados nas UBSs para atuar na área e realizar o encaminhamento correto e fluxo para a alta complexidade. Afinal, as unidades básicas de saúde são a porta de entrada do SUS para qualquer tratamento.
Outra barreira a ser superada é o acesso a estes medicamentos.
Tenho recebido em nosso gabinete muitas demandas de pacientes que relatam imensa dificuldade de acesso a remédios, com atrasos e problemas de logística por parte do Ministério da Saúde, mesmo quando se trata de decisões judiciais.
Por outro lado, o MS continua afirmando que a aquisição e entrega de tais medicamentos está transcorrendo dentro da normalidade. Sabemos, no entanto, que os problemas seguem sem solução. E o pior: sem resposta.
Recentemente, protocolei um requerimento de informação solicitando explicações ao Ministério da Saúde sobre esse cenário de urgência e descaso, no entanto ainda não obtivemos retorno.
Não posso deixar de citar também o nosso trabalho na Lei Brasileira de Inclusão, que prevê a ampliação do número de doenças detectadas na triagem neonatal ofertada pelo SUS. Este exame é obrigatório desde 1992, mas hoje detecta apenas 6 doenças.
Na rede privada, são 48 doenças.
Ou seja, muitas doenças raras poderiam ser detectadas e tratadas precocemente, garantindo muito mais qualidade de vida ao paciente e suas famílias, além de um impacto econômico muito menor à Saúde Pública.
Ainda trabalhamos para que cursos de medicina incluam em sua grade disciplinas que abordem o diagnóstico de doenças raras. A ideia é que os médicos brasileiros, mesmos os recém-formados, estejam preparados para diagnosticar tais patologias.
Vale lembrar ainda que em 2014, o Ministério da Saúde instituiu a Política de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras no Sistema Único de Saúde (Portaria N°199/2014). O objetivo da portaria, sobretudo, era o de reduzir a mortalidade e melhorar a qualidade de vida das pessoas com doenças raras por meio de ações de promoção, prevenção, detecção precoce, tratamento multiprofissional, cuidados paliativos e acesso aos direitos previdenciários e sociais.
Para colocar tal iniciativa em prática, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC) convocou à época um grupo de 60 especialistas, que criaram um grupo de trabalho envolvido na definição dos eixos temáticos listados na Portaria. A ideia do GT era discutir e listar, dentre o imenso universo das doenças raras, aquelas prioritárias para a elaboração de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDTs).
Como resultado deste trabalho, concluiu-se que até o ano de 2015 seriam publicados 12 novos PCDTs. No entanto, até hoje nenhum destes protocolos foi publicado. Os 35 PCDTs atualmente incorporados ao SUS são anteriores à portaria. Ou seja, podemos afirmar que, na prática, pouco – ou nada – fora feito para tornar a política de atenção às pessoas com doenças raras uma realidade no Brasil.
Para buscar mudanças neste cenário, tive a iniciativa de criar em 2015 a Frente Parlamentar Mista de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, sobretudo para monitorar e favorecer a concretização da Portaria 199.
A Frente é composta por 182 deputados e 51 senadores e a nossa missão é tão grandiosa quanto os desafios para encorajar as pessoas e suas famílias a não desanimarem, além de liderar e encorajar mais líderes a buscarem vias de tratamento e incentivar a pesquisa, que é essencial para alavancar qualquer política que se refira ao raro.
Aliás, não por acaso, este ano, o tema para o Dia Mundial das Doenças Raras, celebrado neste dia 28, é a investigação.
Afinal, para a maioria das seis mil doenças raras existentes não há pesquisa suficiente, investigação, envolvimento, interesse.
E não vejo outra forma de alavancar tais politicas públicas que não seja, essencialmente, ouvindo as pessoas e buscando informação para melhorar a vida delas.
Neste sentido, os pacientes com doenças raras precisam e devem ter sua voz escutada em todas as esferas.
Precisamos entender a realidade que habita em cada microcosmo deste universo ainda tão ignorado. Afinal, somos raros, mas somos muitos.
*Mara Gabrilli, deputada federal pelo PSDB/SP, publicitária, psicóloga, foi secretária da Pessoa com Deficiência da capital paulista e vereadora também por São Paulo. Atualmente, exerce seu segundo mandato na Câmara dos Deputados. Em 1997, após sofrer um acidente de carro que a deixou tetraplégica, fundou uma ONG para apoiar o paradesporto, fomentar pesquisas cientificas e promover a inclusão social em comunidades carentes.