Graça Magalhães Ruether, O Globo
BERLIM — Quase 73 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, novos documentos localizados nos arquivos alemães e russos revelam que, na busca por métodos eficientes e de baixo custo para matar, os nazistas fizeram uma espécie de laboratório com os presos soviéticos ainda no início da guerra contra a União Soviética, em 1941. Em menos de um ano, o Terceiro Reich matou 2 milhões de russos presos ao deixá-los sem comida. Da fome aos fuzilamentos em massa, vários métodos foram testados. O assassinato seria considerado o segundo maior crime do regime nazista, depois do Holocausto, quando foram mortos 6 milhões de judeus.
Os documentos foram encontrados nos arquivos da Wehrmacht, as forças armadas alemãs durante o Terceiro Reich, guardados nos Arquivos Federais Alemães, e no arquivo da Segunda Guerra Mundial em Moscou. Eles foram avaliados por historiadores dos dois países durante o processo de digitalização do material, que começou em 2016, seguindo decisão dos ministérios do Exterior da Alemanha e da Rússia.
Sybille Suchan-Floss, historiadora da ONG Kontakte que também analisou os documentos, explica que os nazistas não davam alimentos aos presos soviéticos não só porque os julgavam de uma raça inferior, mas também para evitar uma crise de fome entre os alemães, o que já havia acontecido na segunda metade da Primeira Guerra Mundial e provocara protestos da população.
Dos 5,7 milhões de soviéticos que caíram nas mãos dos nazistas como prisioneiros, o número de mortos varia de 2 milhões a 3 milhões. Ao todo, a “guerra do Leste”, como a invasão entrou para a História, teria custado a vida de 27 milhões de soviéticos, mais do que os 20 milhões registrados até agora.
— Esse número absurdo faz com que a Segunda Guerra não seja vista como passado na Rússia, mas sim como algo que continua ainda hoje na mente das pessoas. Todas as famílias tiveram vítimas — explica Sybille.
PLANO PREVIA 40 MILHÕES DE MORTOS
Segundo o historiador Peter Jahn, ex-diretor do Museu Alemão-Russo Berlim-Karlshorst, nem mesmo hoje todas as dimensões monstruosas do terror que os alemães praticaram contra os soviéticos são inteiramente conhecidas. Um dos motivos que levaram à falta de interesse da Alemanha no assunto é que grande parte das famílias do país tinha um envolvido na guerra, quase sempre do lado dos responsáveis pelas mortes. A Guerra Fria também ajudou no esquecimento geral das vítimas soviéticas.
Pela lógica nazista, os eslavos seriam os penúltimos a figurar na hierarquia das raças, à frente apenas dos judeus. O Leste, com as suas terras amplas e baixa densidade demográfica, era visto como um espaço essencial para o crescimento da população alemã.
Sybille lembra que o roteiro dos nazistas, que se consideravam no topo da escala que criaram, era vencer a guerra contra a URSS e colonizá-la.
A historiadora explica que os nazistas documentavam tudo nos mínimos detalhes, até os custos para assassinar uma pessoa. A Wehrmacht estava tão empenhada nesta missão quanto outras divisões do regime nazista, como a Gestapo — a polícia secreta alemã —, a SS e a SA.
Recentemente, a Fundação Topografia do Terror, de Berlim, realizou uma exposição sobre o “Generalplan Ost” (ou “Plano geral do Leste”), que definia as metas, as liquidações de civis e o tratamento dado aos prisioneiros de guerra. Esse plano previa um número de mortos ainda maior, de quase 40 milhões de eslavos, para desocupar as terras onde deveriam viver os alemães.
— Eles planejavam identificar os eslavos através do nome ou do idioma materno. Estes deveriam ser mortos. Outros habitantes da região, como os ucranianos, seriam poupados para o uso como mão de obra — explica Sybille.
O plano já existia na cabeça de Hitler, mas foi oficializado em detalhes por ordem do comandante Heinrich Himmler, em 1942. Para habitar as terras que estariam vazias após a matança, 5 milhões de alemães seriam enviados para a região ao longo de 25 anos. O plano definia até nomes para as novas cidades alemãs que seriam instaladas no Leste.
O destino dos presos soviéticos foi duplamente trágico. Menos de 50% sobreviveram à fome e às execuções. Ao retornar a suas casas, foram mais uma vez punidos, pois eram vistos pelo regime stalinista como traidores, uma vez que tinham sobrevivido. São homens como Dmitriy Voloshin e Jakoww Stepanenko, ex-presos de guerra que estiveram recentemente em Berlim para contar a jovens alemães suas histórias de vida. Ao voltarem para a Rússia, Voloshin e Stepanenko foram enviados para campos de trabalho na Sibéria e não tiveram o direito de participar das organizações de veteranos.
Se a tendência em toda a Alemanha foi o esquecimento ou a falta de conhecimento sobre o assunto, pelo menos um memorial na cidade de Zeithain, no estado da Saxônia, antiga Alemanha comunista, lembra os 35 mil soviéticos que morreram de fome na região.