segunda-feira, 31 de outubro de 2022

'A vitória de Pirro do consórcio da imprensa', por Sílvio Navarro

 

Luiz Inácio Lula da Silva e William Bonner | Foto: Reprodução redes sociais.


Tomada pela geração "progressista", a velha mídia rasgou manuais de redação para eleger Lula a qualquer custo — mesmo que o preço seja a censura


“Obrigado à imprensa pelo tratamento que deu nesse processo eleitoral.”

Foi com essa frase que Luiz Inácio Lula da Silva encerrou neste domingo, 30, seu primeiro discurso depois da proclamação de sua vitória na disputa à Presidência da República. O petista estava cercado de dezenas de aliados, que pretendem embarcar juntos com destino ao passado. No palco, foram fotografados, filmados e aplaudidos pela ala majoritária de uma imprensa que envelheceu mal.

Pela primeira vez desde a redemocratização do país, as empresas tradicionais de comunicação se uniram para trabalhar em pool — envernizado com o rótulo de consórcio. Os manuais de redação, a maioria redigida ainda na década de 1980, foram rasgados. Como as cartilhas sempre proibiram o compartilhamento de apurações entre jornalistas concorrentes, foi preciso encontrar uma justificativa: a pandemia. Era preciso manter a divulgação uniforme do número de mortos pela covid.

A formação do pool partiu da autoproclamada geração “progressista” dos profissionais da Folha de S.Paulo, do UOL, O Globo, G1, Extra e O Estado de S. Paulo. “A iniciativa surgiu em junho de 2020, após ameaça do governo federal de sonegar números da pandemia”, escreveu a Folha. “O consórcio coleta e publica diariamente dados de vacinas, casos e mortes provocados pelo coronavírus”, disse. Depois, o consórcio foi premiado pelo trabalho por associações formadas por jornalistas das próprias redações.

Ao longo dos últimos anos, é possível encontrar centenas de editoriais, artigos ou charges em defesa de Lula, mas ninguém superou o âncora da TV Globo William Bonner

As manchetes da covid inundaram o noticiário durante quase dois anos. No meio do caminho, o pool ganhou a adesão de um grupo de senadores, capitaneado pelo trio Renan Calheiros, Randolfe Rodrigues e Omar Aziz, numa CPI formatada para ser um palanque eleitoral antecipado. Funcionou durante seis meses.

O último suspiro sobre a pandemia foi dado em 28 de outubro, a dois dias das urnas, mas passou despercebido — não fosse o calendário eleitoral, a manchete do jornal O Globo abaixo poderia causar uma nova onda de isolamento e uso de máscaras.

Foto: Reprodução

Se a aritmética justificava ou não a atuação em conjunto no período mais agudo da crise sanitária, o fato é que o consórcio inaugurado em 2020 nunca mais se desfez, porque tinha um objetivo comum: impedir a reeleição do presidente Jair Bolsonaro.

Do ‘despiora’ às manchetes adversativas

A imprensa em campanha também inovou na artilharia contra Bolsonaro. O auge ocorreu quando um colunista da Folha de S.Paulo cunhou o termo “despiora”, por não conseguir admitir a melhora da economia depois da pandemia. A aberração originou uma enxurrada de conjunções adversativas sobre o crescimento inesperado do PIB (Produto Interno Bruto), a redução do desemprego e a deflação (inflação negativa). No limite, uma apresentadora da CNN chegou a lamentar que, “infelizmente, vamos falar de uma notícia boa”.

 


As adversativas passaram a ser as melhores amigas dos jornalistas | Foto: Reprodução

Além do festival de manchetes distorcidas, o eleitor ainda acompanhou a atuação das redações para minimizar as barbeiragens de Lula nos discursos improvisados. Quando palavras como “gafe”, “escorregão” e “falha” estavam exauridas, um colunista do UOL inovou: “Lula pisa no tomate ao falar de Ku Klux Klan, que o povo nem sabe o que é”, escreveu Ricardo Kotscho, ex-secretário de imprensa no governo do petista.



Foto: Reprodução UOL

Fábrica de pesquisas

Um dos principais instrumentos usados pelo consórcio de mídia foi a usina de pesquisas. Mesmo com erros grotescos no primeiro turno, elas continuaram a ser publicadas. Na reta final, por exemplo, um grupo de jornalistas e analistas convidados debatia com ar de seriedade números do Ipec (ex-Ibope). O instituto contratado pela Globo mostrava que Lula venceria com 54% dos votos válidos, ante 46% de Bolsonaro. Um dos analistas previu que a distância poderia ser ainda maior, porque dificilmente Bolsonaro conseguiria melhorar seu desempenho em Minas Gerais — o resultado final no Estado foi de apenas 50 mil votos a favor do petista.

A equipe de comentaristas também discorreu animadamente sobre a corrida eleitoral em São Paulo. Uma jornalista da emissora chegou a dizer que o petista Fernando Haddad cresceu tanto que “estava dando um calor” em Tarcísio Gomes de Freitas. O Ipec, pago pela Globo indicava empate técnico (na margem de erro) entre os dois candidatos (52% a 48% em votos válidos). Tarcísio venceu por 55% a 44% no maior colégio do país.

Foto: Reprodução G1
Foto: Reprodução JN/G1

A falência dos institutos de pesquisa foi tema de uma reportagem de Oeste publicada na edição especial do primeiro turno. Foi a sexta abordagem sobre o assunto desde 2020, ano em que Oeste decidiu não publicar nenhuma sondagem eleitoral, por causa das distorções nos questionários e da falta de transparência nos dados disponibilizados ao eleitor.

Aqui jaz um instituto de pesquisa

É provável que esses institutos, alguns rebatizados com novos nomes, no ano que vem voltem a comercializar porcentagens — especialmente aqueles ligados aos próprios grupos de mídia, como o Datafolha.

O consórcio absolveu Lula

Ao longo dos últimos anos, é possível encontrar centenas de editoriais, artigos ou charges em defesa de Lula, mas ninguém superou o âncora da TV Globo William Bonner. Aos 58 anos, o editor-chefe do Jornal Nacional será lembrado por afirmar durante uma sabatina que o petista “não deve nada à Justiça”.

A frase foi usada à exaustão pelos apoiadores de Lula. O PT gastou R$ 100 mil para divulgar um anúncio no Google e no YouTube, segundo o qual Lula não é corrupto. A banca de advogados da campanha chegou a pedir censura ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para quem tratasse o petista como “descondenado” e argumentasse que jamais houve absolvição — por um erro burocrático de CEP, seu processo voltou para a primeira instância.

O papel de Bonner foi ainda mais patético durante o último debate da emissora, na antevéspera do pleito. Bolsonaro afirmou no palco que Lula fora absolvido por Bonner. O apresentador, então, se autoconcedeu um inédito direito de resposta.

“Como também fui citado pelo candidato Bolsonaro, me permita também fazer um esclarecimento muito breve”, disse. “Eu, de fato, disse que Lula não deve nada à Justiça, mas como jornalista não digo coisas tiradas da minha cabeça. Digo com base em decisões fundamentadas no Supremo Tribunal Federal.”

A fala de Bonner sobre seguir à risca as ordens do STF e do TSE, especialmente do ministro Alexandre de Moraes, foi uma das balizas do consórcio da imprensa. O deputado gaúcho Marcel Van Hattem, um raro sobrevivente do Novo, sentiu isso na pele. Ele foi tratado com animosidade e chegou a ser interrompido pelos apresentadores da GloboNews, por criticar a censura imposta pelo TSE a veículos com linha editorial liberal-conservadora.

As redações da velha mídia amanheceram em festa nesta segunda-feira, 31, com o resultado das urnas. As eleições nos Estados, no Congresso Nacional ou nas Assembleias não importavam. Era preciso derrotar Bolsonaro a qualquer custo — mesmo que o preço fosse negociar a própria liberdade.

O custo mais alto pode ser ter de conviver no futuro com um tribunal que se acomodou no papel de censor da República — e a mordaça um dia pode bater à porta do consórcio. Ou de um presidente que não resistirá à tentação da esquerda de aplicar a prometida “regulação da mídia”. Nos dois casos, a ameaça à liberdade de expressão é uma realidade.

Uma das analogias mais utilizadas na História para descrever esse tipo de situação é a chamada vitória de Pirro — vitória com ar de derrota. Remete às Guerras Pírricas (280 a.C. e 275 a.C.), quando o exército do rei venceu uma batalha contra os romanos, mas deixou perdas irreparáveis pelo caminho. A vitória lhe custou o futuro.

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Revista Oeste