sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

"A independência do BC e o dinheiro sólido", por Rodrigo Constantino

Para que a inflação não se torne um recurso populista de governos aventureiros, resta apenas a opção de bancos centrais independentes e relativamente blindados de politicagem




Com a mudança de comando na Câmara, finalmente o projeto de autonomia legal do Banco Central foi votado e aprovado. 

A medida é desejável e se arrastava havia décadas, pois encontrava resistência nos suspeitos de sempre: os políticos que enxergam na política monetária uma extensão da política fiscal, ou seja, pretendem utilizar as prerrogativas da autoridade central monetária para custear seus projetos políticos, gastando recursos que nem sequer existem e que não querem retirar de forma direta da população por impostos, com receio da impopularidade desse caminho. 

O “imposto inflacionário”, por ser indireto, é também mais palatável para a classe política.

Foi George Bernard Shaw quem talvez melhor tenha definido o processo inflacionário: 

“Se os governos desvalorizam a moeda para trair todos os credores, você educadamente chama esse procedimento de inflação”. 

O risco de falsificar a moeda sempre existiu, e por isso mesmo surgiu a demanda por padrões e selos de governos ou bancos. A falsificação de moeda é uma fraude, que enriquece o fraudador em detrimento do restante dos usuários da moeda. 

Os primeiros a receber o dinheiro falsificado se beneficiam à custa dos últimos. O governo tem como função justamente evitar tal fraude, punindo com prisão os criminosos. 

O grande problema é quando o próprio governo adere à prática de “falsificação”, com o respaldo da lei. 

A invenção do papel-moeda foi um convite tentador para os governos embarcarem nessa nefasta prática inflacionária.

Pelo menos em três vezes na história norte-americana, desde o fim do período colonial, a população sofreu bastante com o sistema de fiat money

Durante a Revolução Americana, para financiar o esforço de guerra, o governo central emitiu vasta quantidade de papel-moeda, os continentals

A desvalorização foi abrupta, e antes mesmo do término da guerra aquelas notas não tinham mais valor algum. 

O segundo período foi durante a guerra de 1812, quando os Estados Unidos saíram do padrão-ouro, mas retornaram dois anos depois. 

O terceiro período ocorreu durante a Guerra Civil, com a emissão dos greenbacks, notas não resgatáveis para pagar a guerra. No final da guerra, os greenbacks tinham perdido metade de seu valor inicial.

O Banco Central é a instituição que possui o privilégio de controlar a emissão de papel-moeda nas economias modernas e, portanto, é o grande responsável pelo processo inflacionário. O aumento no preço dos bens é uma consequência da inflação, pois a maior oferta de moeda leva a uma queda relativa de seu valor. 

O público não tem o poder de criar mais moeda. Somente o governo, por meio do banco central, tem esse poder. Os bancos comerciais podem obter o mesmo resultado inflacionário com crédito sem lastro em reservas. 

Mas cabe ao Banco Central controlar isso por meio de seus instrumentos, como o compulsório.

O padrão-ouro é um concorrente de peso para os governos, justamente porque o ouro quase sempre foi escolhido naturalmente como moeda. 

Mas os governos não gostam dessa concorrência, pois o padrão-ouro anula sua capacidade de usar o imposto inflacionário como disfarce para mais gastos. Aquilo que os inimigos do padrão-ouro costumam enxergar como seu grande vício pode ser justamente sua grande virtude: ele é incompatível com uma política expansionista de crédito.

O poder da impressão de dinheiro artificial nas mãos do governo sempre foi um enorme risco para a liberdade e a prosperidade dos povos. Esse poder foi utilizado de forma abusiva desde quando o imperador romano Diocleciano resolveu reduzir o teor metálico das moedas, fazendo com que perdessem valor real. 

Em situações mais emergenciais, essa prerrogativa sempre costuma ser usada pelos governos. Em tempos de uma suposta ameaça de guerra ou crise econômica, os governantes acreditam na necessidade urgente de aumento dos gastos públicos, mas muitas vezes a maioria do povo não concorda. 

O governo então ignora a saída democrática de propor uma votação sobre os necessários sacrifícios momentâneos, preferindo o caminho do engano, por meio da política inflacionária.

Inflação é uma política, pois é sempre um fenômeno monetário

O recurso inflacionário garante ao governo os fundos que ele não conseguiria captar com impostos diretos ou por emissão de dívida. Eis o verdadeiro motivo para uma política inflacionária. Seus defensores são inimigos do “dinheiro sólido” e, concomitantemente, da liberdade individual. 

Até mesmo o ex-chairman do Federal Reserve Alan Greenspan compreendia isso. Greenspan escreveu na década de 1960: “O padrão-ouro é incompatível com o déficit crônico nos gastos governamentais”. 

Ele acrescentou: “Os defensores do welfare state foram rápidos em reconhecer que, se desejassem reter o poder político, a magnitude da taxação teria de ser limitada e optaram por recorrer aos programas de déficit maciço, isto é, tiveram de tomar dinheiro emprestado, emitindo títulos do governo, para financiar despesas em grande escala”. 

O déficit do governo sob um padrão-ouro é severamente limitado. A lei de oferta e demanda não pode ser cunhada. 

Greenspan, então, conclui: “Na ausência do padrão-ouro, não há nenhuma maneira de proteger a poupança do confisco por meio da inflação”. 

Se houvesse, o governo teria de tornar sua posse ilegal. Não por outro motivo o governo norte-americano proibiu a posse de ouro em 1933.

A volta do padrão-ouro parece irrealista na economia moderna, então resta apenas a opção de bancos centrais independentes e relativamente blindados da politicagem. A política monetária é o instrumento que um banco central tem para conter a expansão creditícia que produz inflação. 

Quando leigos no assunto olham apenas o efeito imediato e criticam decisões de aumento de juros, podemos dar um desconto. Mas quando economistas e empresários caem na mesma falácia da miopia, levantando a falsa dicotomia de mais inflação e mais crescimento, aí temos muito que temer. 

Afinal, a estabilidade dos preços e a maior previsibilidade advinda dela são fundamentais para o crescimento sustentável da economia. Essa confiança é o pilar que sustenta o crescimento a longo prazo, favorecendo o crédito e, acima de tudo, os investimentos produtivos. Eis os pilares que muitos querem derrubar, pedindo menor controle inflacionário para ter mais crescimento imediato.

Vários países parecem ter aprendido a lição de que o controle da inflação é fundamental. Inflação não é fruto da ganância de empresários ou nem mesmo de choques de oferta, que geram apenas mudanças relativas nos preços. Inflação é uma política, pois é sempre um fenômeno monetário. A Zona do Euro, por exemplo, conta com uma meta implícita de 2% para a inflação, e a independência do banco central é garantida, nas tradições do Bundesbank. 

Os Estados Unidos possuem o Federal Reserve, banco central independente e que trabalha com meta implícita de 2% também. A Suíça vai na mesma linha, com meta implícita de 2%. O Canadá possui meta oficial de 2%, assim como a Inglaterra e a Suécia. Entre os países menos desenvolvidos, o Chile possui uma meta oficial de 3%, a mesma de Hungria, Coreia e México. A Noruega trabalha com metas oficiais de 2,5% para a inflação, a mesma da Islândia e da Polônia.

“Não há meio mais seguro e mais sutil de subverter a base da sociedade do que corromper sua moeda — processo que empenha todas as forças ocultas da economia em sua destruição, de modo tal que só uma pessoa em cada milhão consegue diagnosticar”, resumiu Keynes. 

A garantia de independência legal do nosso Banco Central do Brasil deve ser defendida por todos aqueles que temem, com razão, um retrocesso populista nessa área. Basta pensar na Nova Matriz Macroeconômica do PT, ou num cenário sombrio de alguém como Ciro Gomes assumindo a Presidência, para deixar claro como é importante tentar proteger o Banco Central das garras políticas.

Tecnocratas são humanos, sofrem influências de paixões, erram. Mas um presidente de banco central subserviente ao presidente da República é algo bem pior do que um que responda apenas aos padrões objetivos estabelecidos pelo Congresso, tendo de cumprir a meta de inflação determinada e ponto-final.


Revista Oeste