domingo, 5 de abril de 2020

"China — O início do declínio?", por Márcio Coimbra

Uma crise de confiança, potencializada pela ausência de transparência, pode ser fatal para a estratégia chinesa


Xangai fica localizada na costa central da China Oriental e é a cidade mais populosa do país, com cerca de 24 milhões de habitantes | Foto: Leslin_Liu
A pandemia de coronavírus pode se tornar um importante ponto de inflexão na geopolítica mundial diante de uma bem cultivada imagem da China que, aos poucos, se desfaz. Enquanto o mundo enfrenta as consequências da pandemia iniciada em Wuhan, as questões sobre a dependência econômica do país oriental se espalham pelo mundo, colocando em xeque o modelo chinês de expansão global.
A mais importante guerra travada pela China neste momento reside no controle da narrativa. O governo trabalha para produzir propaganda efetiva e real que impeça a desconstrução do bem gerido retrato erguido pelo partido comunista nas últimas décadas. O tema vai além, pois a gestão da imagem do país se confunde com a legitimidade de Xi Jinping e sua liderança, expressada na capacidade de lidar com uma questão sanitária que se desdobrou em uma crise com brutais reflexos econômicos e de confiança.
Nenhuma nação se aproveitou melhor da expansão da globalização nas últimas décadas do que a China. Com uma imagem bem construída e estratégias de expansão cuidadosamente planejadas, soube atrair investimentos, mercados e dependência de diversos países perante sua demanda econômica. Diante das dúvidas levantadas pela expansão do coronavírus, um movimento milimetricamente conduzido por décadas pode sofrer um de seus mais importantes revezes.
O resultado até o momento tem sido que o investimento na China passou a ser repensado por largas corporações que possuem operações no país. Os problemas começam pela ausência de proteção no que diz respeito a propriedade intelectual, passam pelos recentes aumentos nos custos de produção e desaguam agora na questão da segurança sanitária para os empregados. Os desdobramentos dos desafios enfrentados por Pequim diante da pandemia são maiores do que se imagina, o que pode gerar enorme reflexo no desenho dos fluxos de comércio internacional.
Outro ponto a ser considerado é o modelo político chinês, baseado em um partido único com liberdades limitadas, um sistema que funciona com bons ventos e correntes comerciais em condições favoráveis. Torna-se, entretanto, arriscado para os negócios na medida em que outros fatores entram na equação. Uma crise de confiança, potencializada pela ausência de transparência governamental em diversas frentes, pode ser fatal para a estratégia chinesa no cenário externo, com sérios desdobramentos nas cadeias globais de comércio. Neste cenário, regimes democráticos constitucionais estáveis podem, no médio prazo, reocupar uma posição de maior protagonismo nos negócios internacionais.
O mundo ainda se pergunta se uma ação efetiva do governo chinês diante da pandemia poderia ter impedido a disseminação do vírus. Segundo artigo da Universidade de South Hampton, uma intervenção inicial e combinada teria sido crucial para evitar a propagação viral. Estima-se que esta ação poderia ter reduzido o contágio em 66% na primeira semana, 86% na segunda e 95% na terceira. Se isto tivesse sido feito com antecedência, dizem os pesquisadores, teríamos evitado a situação atual.
Certamente o mundo que emergirá dessa pandemia será diferente. Isto começa e termina pelo papel, imagem e influência da China no xadrez político internacional. Ainda é preciso entender o grau de eficácia da gestão da crise chinesa em suas mais diversas frentes e como isto pode afetar as políticas do partido comunista e a liderança de Xi Jinping. Além disso, o regime fechado levanta suspeitas relativas ao grau de confiança da comunidade internacional diante de surtos pandêmicos que se originam em território chinês e sua efetividade em combatê-los no nascedouro. Para recobrar a confiança quebrada, o partido terá que fazer mais do que fornecer ajuda ao mundo para minimizar os efeitos da pandemia.
Este é o ano do rato na horóscopo chinês, que significa reinvenção e renovação. Um mundo pós-coronavírus reserva certamente um novo cenário e a possibilidade de recomeço. Expõe, também, o receio de que este seja o início do declínio de um país que até então tecia de forma contínua, lenta e gradual seus planos de expansão global. Mais do que nunca, a China precisa dos auspícios deste ano para repensar sua posição internacional.

Foto: MOISES SILVA/O TEMPO 31-10-20
 (*) Márcio Coimbra é Diretor-Executivo do Interlegis no Senado Federal e ex-Diretor da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil)

Revista Oeste