Sob o título “O alívio e a vergonha”, o artigo a seguir é de autoria de Edison Vicentini Barroso, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.
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Dia histórico! Alívio dos que primam pela decência, pela esperada cassação do mandato de Dilma Rousseff. Nesse sentido, o Brasil respira de novo.
Mas é um alívio permeado por extrema vergonha e profunda indignação.
Ricardo Lewandowski, ministro do STF e a presidir a fase final do julgamento do impeachment, sob a capa de jogo de palavras, lançada a responsabilidade nas costas do Senado, rasgou a Constituição Federal.
Do parágrafo único de seu artigo 52, de forma clara e insuscetível doutra interpretação, vê-se que a decisão qualificada dos senadores, de perda do cargo pela presidente da República, necessariamente, leva à sua inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública – sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis. Aqui, entre vírgulas, sobreleva a preposição ‘com’ (com inabilitação) – a traduzir subordinação.
É pena que faz parte do tipo penal ínsito ao crime de responsabilidade.
Portanto, dele indissociável. Aliás, a perda do cargo é apenas a premissa da pena de inabilitação. Coexistem, pois – uma a não viver sem a outra.
Grave como é, à configuração do crime de responsabilidade se exige mais que o só afastamento do cargo atual do criminoso. Daí a razão de o legislador constitucional lhe agregar a inabilitação para o exercício de função pública – que não teria sentido, fosse outra a interpretação.
E o golpe inconstitucional veio donde menos se haveria de esperar, pela chancela do indigitado ministro, ao permitir fosse o julgamento fatiado.
Mais grave, da forma a mais canhestra possível – uma primeira decisão, com quórum qualificado de 2/3, quanto à perda do mandato; depois, mantido sufrágio qualificado, para preservar o texto constitucional que prevê daquela inabilitação de função.
Ora, abstração feita à impossibilidade de alteração de diretriz constitucional por via de só destaque parlamentar – do que Lewandowski sabe bem, ou deveria saber –, no mínimo, à vista da realidade do texto da Constituição, haver-se-ia de inverter a equação, também se exigindo 2/3 dos votos para mudar o texto de lei (e não mantê-lo).
E, convenientemente, não foi do que se fez.
E, convenientemente, não foi do que se fez.
Qual aconteceu, mais que aparente a probabilidade de acordão entre partidos (em especial, PT e PMDB), sob o beneplácito da toga, no sentido de acertar a situação. E com a colaboração do presidente do Senado, Renan Calheiros, que, com a Constituição nas mãos, ficou a cavaleiro para, num rompante, antecipar o voto pró-Dilma na questão da inabilitação para o exercício de função pública.
Dilma, apesar de impichada, sem a pena correlata ao crime. Eduardo Cunha, em vias de cassação, pelo precedente específico, na perspectiva virtual de igual enquadramento e salvação. Como se diz, entre mortos e feridos, todos se salvaram!
E o fato se deu à vista geral, por mídia aparelhada a mostrar o espetáculo a toda a Nação. Sem pudor, assim se fez. A que ponto chegamos! Alguém duvida da institucionalização da insegurança jurídica?
Relegar ao Senado a apreciação decisiva da constitucionalidade da norma, na presença daquele que, na condição de presidente do STF, mais a haveria de proteger e melhor interpretar, é em tudo injustificável. Ou o interesse maior é o da correta exegese constitucional, de molde, inclusive, a evitar desnecessários desdobramentos judiciais, ou outro interesse existe, superior, conquanto não revelado. Não há escapatória!
Fernando Collor, por duas vezes, na sessão do Senado, também na condição de ex-presidente da República cassado, em que pese haver renunciado ao mandato, se insurgiu contra o caminho a ser hoje trilhado pelo Senado, sob a batuta de Lewandowski, chegando a dizer, em alto e bom som, que, cotejados dos dois casos – seu e de Dilma –, incorrer-se-ia em dois pesos e duas medidas.
Nem assim, tampouco diante de judiciosas considerações de senadores favoráveis ao impeachment e à aplicação da pena a ele concernente, na dicção da Constituição, houve sensibilização. A toque de caixa, a norma constitucional foi alterada – do que inapropriado a país que se diga cultor do devido processo legal.
E não adianta se argumentar com base em lei ordinária anterior à Constituição de 1988, como o ministro chegou a fazer, pois, sabidamente, no que com esta conflite, aquela de nada há de valer – no campo da chamada teoria da recepção das normas infraconstitucionais pela Constituição Federal.
E se um ministro da Suprema Corte disso não sabe, ou faz que não sabe, está-se diante de fato grave, de sérias repercussões para o mundo jurídico nacional. Como, doravante, ficarão as coisas – ante o precedente de que se trata? Qual a segurança do operador do Direito e do povo que dele se serve?
Na situação de Dilma, como ficou – caso ninguém tome alguma providência para restabelecimento do primado da Constituição –, por exemplo, mesmo cassada por crime de responsabilidade, poderá ser nomeada para cargo público (quiçá uma Secretaria, em governo de aliados seus), subvertido do princípio do juiz natural, de forma a se lhe atribuir, de novo, foro privilegiado; agora, na esfera do STJ (Superior Tribunal de Justiça).
A lei há de valer para todos, e não só na retórica – essencialmente, pois, na prática. Mas, aqui, no Brasil, inda há aqueles afeitos ao mau costume de afeiçoar as leis às conveniências próprias.
O resultado da peripécia, dessa estapafúrdia decisão, dá a Fernando Collor, ao menos em linha de princípio, o direito de pedir indenização ao Estado brasileiro – pelo tempo em que ficou inelegível!
A pergunta é esta: a coisa ficará por aí? Àqueles legitimados a algo fazer no sentido de reverter a inadequada decisão de habilitação de Dilma para o exercício de função pública não calará fundo o indispensável resgate dos princípios ético/constitucionais? Então, com a palavra final estará o pleno do STF – mais capacitado a ditar regras constitucionais, ao menos em tese, que outro qualquer.
Uma coisa é o Judiciário não se intrometer em decisões políticas, desde que de cunho exclusivamente político. Outra, deixar de interferir à vista de manifesta ilegalidade, de fundo constitucional (uma como que singular emenda constitucional) – inda que referendada pelo presidente do próprio STF.
Em suma, decisão política sem base jurídica não pode subsistir. Onde a Constituição não discrimine, como no caso – a prever a pena de inabilitação como decorrência da própria cassação –, não se permite o faça o aplicador da lei, donde for e de onde vier. A rigor, pois, como fiscal da Constituição, o ministro do STF deixou a desejar, resvalando para o campo da gritante ilegalidade. Acorda, Brasil!