Fernando Pessoa (Foto: Divulgação)
A presença do Brasil, na vida e na obra de Fernando Pessoa, é fragmentária. E contraditória. Reconhece a importância de nosso país, é certo: Tanto quanto hoje podemos ver, há, de origem europeia, só duas nações fora da Europa com alma para poder ter império – os Estados Unidos e o Brasil (“Portugal, vasto império” – inquérito). Enquanto ao mesmo tempo nos dedica, no seu “Ultimatum”, palavras bem pouco lisonjeiras: E tu, Brasil, “república irmã”, blague de Pedro Álvares Cabral, que nem te queria descobrir! Em Carta a Eurico de Seabra (de 31/4/1996), como que completa: Sociologicamente, não há Brasil.
Por isso, é mesmo natural que dois heterônimos apareçam ligados a nossa terra. Eduardo Lança, um brasileiro que nasce em Salvador – local inspirado, provavelmente, no padre António Vieira (que alí viveu, sofreu e morreu). Para pessoa, era o Imperador da língua portuguesa. E Ricardo Reis – que, em 12/04/1919, parte para seu exílio no Rio de Janeiro. A escolha da cidade é uma espécie de homenagem ao amigo brasileiro Luis de Montalvor – que, no Rio, foi assessor de outro brasileiro, Bernardino (Luis) Machado (Guimarães), então Ministro Pleniportuário de Portugal. O mesmo que foi, depois, presidente de Portugal (em 1915/1917 e 1925/1926). Pessoa deve ter se divertido com isso. Reis em seguida feneceu, pouco a pouco, até deixar de escrever em 13/12/1933. Enquanto Montalvor jogou seu carro, com a família, no Tejo – mas essa é outra história.
Portugal e Brasil estão unidos, na alma de Pessoa, sobretudo em duas vertentes principais. Uma é o Sebastianismo. Ponto de união com o Portugal Novo, que seria nosso Brasil. Pessoa reverencia messiânicos daqui. Celebra, por exemplo, a memória de António Conselheiro, bandido, louco e santo, que no Brasil morreu como um exemplo, com seus companheiros sem se render, batendo-se todos, últimos portugueses, pela esperança do Quinto Império e vindo quando Deus quiser, de el-rei D. Sebastião, nosso senhor, imperador do mundo. Outra vertente é a pátria língua – tanto que Portugal quer dizer o Brasil também. E propõe, ainda, considerar o português como língua literária do mundo. Após o que proclama que Minha pátria é a língua portuguesa.
Por aqui, Pessoa gosta de Machado de Assis – fundador e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras. Tanto que pensa publicar, na sua editora Olisipo, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Ficaria no desejo. E também gosta de Cecília Meireles – que no Brasil escreveu, em 1944, os primeiros textos críticos a respeito de sua poesia, na antologia “Poetas Novos de Portugal”.
Há episódio curioso, com eles. Em fins de 1934, Cecília vai pela primeira vez a Lisboa. Ela e seu primeiro marido, Fernando Correia Dias – que se suicidaria, logo depois, no mesmo mês em que morreria Pessoa. Marcam encontro na Brasileira (do Chiado). Depois de duas horas de espera em vão, retorna para o hotel em que se hospedara – provavelmente o Borges (da Rua Garret). E lá encontra exemplar do livro “Mensagem”, de Pessoa, dedicado A Cecília Meireles, alto poeta, e a Correa Dias, artista, velho amigo e até cúmplice (vide Águia). Essa Águia é uma revista em que Pessoa escreve, ilustrada por Correia Dias. Junto, bilhete justificando essa ausência. É que, sentindo vibrações mediúnicas, decidira fazer seu horóscopo daquele dia. Nele vendo que os dois eram para não se encontrar. Com Pessoa, tudo é possível.
No Brasil, Fernando Pessoa também gosta de Catullo da Paixão Cearense – teatrólogo, poeta, cantor e compositor. Autor de “Luar do Sertão”. Em “Heróstrato e a busca da imortalidade”, até prevê que a história preservará Walt Whitman porque nele se encontram todas as demências do Norte, tal como se encontra toda a América Latina em Catullo. Tão grande é sua admiração que pretende traduzir alguns textos seus, a serem publicados na Inglaterra. Trata-se do único brasileiro citado em um poema de Pessoa: Minha vida tem sido, em suma,/ Reles e obscura,/ Sem ventura nem desventura,/ Sombras de trapos na bruma./ Como um caixeiro tenho ficado/ A um balcão nullo,/ Não acontece estar amante, Catullo/ Nem a pasta, conselho de Estado. (“Catullo da Paixão”). Mas Pessoa também está ligado a outros.
Carlos Drummond de Andrade escreveu “Memórias”, em que diz: Amar o perdido/ Deixa confundido/ Nosso coração/... Mas as coisas findas/ Muito mais que lindas/ Essas ficarão. Inspirado em poema de Pessoa (“Isto”) que encerra assim: Tudo o que sonho ou passo,/ O que me falha ou finda,/ É como um terraço/ Sobre outra coisa ainda,/ Essa coisa é que é linda. Tanto que o “Sonetilho do falso Fernando Pessoa”, de Drummond, acaba com essas palavras: Eis-me a dizer: assisto/ Além, nenhum, aqui/ Mas não sou eu, nem isto. Findando com o mesmo “isto” que é título daquele poema de Pessoa.
Vinícius de Moraes também, saravá. Pessoa escreveu Ter sempre o momento/ Aqui, eterno enquanto dure. E Vinicius, no seu “Soneto da Felicidade”, quase o mesmo:Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure.Pessoa escreveu E de repente, mais de repente/...”. Enquanto Vinicius, no seu “Soneto da Separação”, De repente, não mais que de repente/ Fez-se da vida uma aventura errante.
Manoel Bandeira escreveu uma “Consoada” em que diz: A mesa posta/ Com cada coisa em seu lugar. Inspirada no “Aniversário”, de Pessoa, A mesa posta, com mais lugares. Vai mais longe, a admiração de Bandeira. Gosta, especialmente, do segundo de três poemas que Pessoa escreveu, em 29/03/1935, com título único de “Salazar”. Aquele em que diz: Esse senhor Salazar/ É feito de sal e azar/ Se um dia chove/ A água dissolve/ O sal/ E sob o céu/ Fica só azar, é natural/ Oh, com os diabos/ Parece que já choveu.
Dando-se que, em 1958, o general Craveiro Lopes (então Presidente de Portugal) esteve no Brasil. E foi recebido na Academia Brasileira de Letras. Pediram a Bandeira para lhe recitar algum poema seu. E Bandeira, tomando as dores de Pessoa contra o Estado Novo, declamou com maldade: Craveiro, dá-me uma rosa/ Mas não qualquer, general/ Que eu quero Craveiro a rosa/ Mais linda de Portugal/ Não me dês rosa de sal/ Não me dês rosa de azar/ Não me dês Craveiro rosa/ Dos jardins de Salazar.Consta que o general ficou irado com a brincadeira. Azar o dele. Viva Pessoa, ora pois.
P.S. Andei alguns dias novamente por essa Lisboa – que, para Pessoa, era só uma eterna verdade vazia e perfeita. Já voltei. Ainda bem. Primeiro, porque o avião não caiu. Depois, porque ir é bom mas voltar é melhor. Muito melhor. A partir da próxima coluna, volto a falar de nosso Brasil. Na crença, ou ilusão, de que ele ainda tenha jeito.