O Globo
Tem sido repetida com frequência a comparação indevida e absurda das prisões da Lava-Jato com a ditadura. Para quem se esqueceu, ou não sabe, naquela época as pessoas eram sequestradas pelas forças de segurança, respondiam a Inquérito Policial Militar sem direito a advogado, eram julgadas por tribunais militares, mesmo sendo civis, e por leis ditatoriais que suspendiam direitos como o hábeas corpus.
Isso sem falar nos piores horrores, como a tortura e os assassinatos, muitas vezes seguidos de ocultação de cadáver. Corpos nunca foram devolvidos às famílias e ainda assombram o país, que não teve coragem de exigir as informações sobre as circunstâncias dos desaparecimentos. Isso não se parece, em nada, com as prisões da Lava-Jato. O juiz Sérgio Moro defende as prisões cautelares e medidas fortes, e antes que alguém de novo compare com a ditadura militar, é bom lembrar que ele está falando em usar todo o rigor que a lei democrática permite, e não a supressão dessas garantias constitucionais. O que os procuradores da Lava-Jato estão propondo são medidas que levaram ao Congresso, para que, se votadas, fechem as inúmeras brechas pelas quais foi se expandindo o sistema de desvio do dinheiro público.
O ministro Ricardo Lewandowski deseducou jovens quando disse a estudantes do Direito da USP que o impeachment foi um “tropeço na democracia”. Se ele estava convencido de que o país tropeçava na democracia, por que não disse em tempo? Por que Lewandowski aceitou presidir o julgamento final desse impeachment? E ainda tratou o problema como uma recorrência. “A cada 25, 30 anos, temos um tropeço na nossa História.” E acrescentou: “Lamentável. Quem sabe vocês jovens conseguem mudar o rumo da História.” Lamentável que o ex-presidente do Supremo se refira assim ao processo que comandou. O que o constrangeu a ficar por horas a fio, por dias seguidos, presidindo um julgamento, se achava que, naquele ato, o país tropeçava na democracia?
O Brasil teve momentos na sua República que nunca devem ser repetidos, como os dois períodos ditatoriais, que atropelaram a Constituição, as liberdades democráticas, o Direito. Mas esses passados não podem ser comparados ao momento do impeachment, evidentemente. Se o ministro Ricardo Lewandowski acha que a lei, a Constituição, o rito democrático não estão sendo respeitados, deve ser mais claro e não usar uma figura de linguagem que insinua mais do que explica o seu pensamento.
Outros têm sido mais explícitos, mas igualmente equivocados. Frequentemente, advogados, políticos, investigados e réus têm afirmado, para defender seus pontos de vista, que o país estaria voltando aos excessos da ditadura militar. Foi o que disse a defesa do ex-ministro Antonio Palocci no dia da sua prisão. Não há qualquer semelhança entre prisões com ordem judicial, confirmadas por instâncias superiores, com o que se viveu no regime militar. Os que fazem a comparação sabem que usam um velho trauma do país para manipular a opinião das pessoas. A ditadura militar provocou uma sequência tão terrível de atentados aos direitos e garantias individuais que o país tem horror de que tal barbárie ocorra novamente. Para usar esse temor, em seu favor, é que os atingidos pela investigação, e seus defensores, fazem a comparação descabida.
Poderia ser só retórica, exagero de linguagem, técnica de defesa, não fosse uma forma de deseducar o país que recuperou a democracia há apenas 31 anos. Se quem não viveu aquele tempo continuar sendo convencido de que são modelos equivalentes, o país estará banalizando o que foi a ditadura e estará enfraquecendo a democracia. Por que deveriam os brasileiros preservar esse regime se ele permite “golpe”, “tropeço”, “prisões arbitrárias”, “excessos só cometidos no regime militar”?
O mais perigoso desse erro é reduzir a confiança na democracia. Ela nos custou caro demais para que se aceite a leviandade de compará-la com o que o país viveu em época de terror do Estado contra os seus adversários políticos. É falsa, abusiva e absurda a comparação. O país vive o Estado de direito e nele combate o flagelo da corrupção. Não há tropeços, nem arbítrio.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)