sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

'O mundo de José Dirceu', escreve Sílvio Navarro

 

José Dirceu | Foto: Gustavo Andrade/AE)


Ex-líder do PT reassume o projeto de poder do partido e promete 'erguer as bases do socialismo' no Brasil e na América Latina


  
ok

Na noite de 8 de novembro de 2019, o ex-ministro José Dirceu foi ao encontro do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que, assim como ele, acabara de deixar a prisão, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Amigos organizaram um jantar com vinho e risoto para 30 pessoas, num apartamento em Curitiba. Durante a festa, Dirceu foi chamado no canto pelo deputado estadual Emídio de Souza, ex-prefeito de Osasco (Grande São Paulo), para gravar um vídeo à militância do PT. O recado foi direto.

“Estava na trincheira da prisão e agora estou aqui de novo, na trincheira da luta”, afirmou. “Agora não é ‘Lula livre’. É para retomarmos o governo do Brasil. Para isso, precisamos deixar claro que somos petistas, de esquerda e socialistas.”

Enganou-se quem imaginou que, depois de tantas idas e vindas à cadeia, Dirceu tomaria outro rumo na vida. A fala gravada no Paraná foi só o começo. Naquelas poucas palavras, já aparecia uma que seria repetida à exaustão por ele nos anos seguintes: socialismo. Os próprios petistas que hoje ocupam cargos na direção da sigla reconhecem que aquele dia ficou marcado como o estopim de um novo projeto de poder do PT.

Aos 75 anos, o ex-guerrilheiro está mais ativo do que nunca — e tem sido cada vez mais influente na forma como os petistas têm se posicionado sem medo de represálias na mídia. Como mostrou a edição 95 de Oeste, o partido parece cada dia mais disposto a encarar as urnas sem nenhuma maquiagem dos marqueteiros do passado. É o PT in natura.

Uma simples busca na internet com as palavras “José Dirceu” e “socialismo” leva a uma dezena de lives, entrevistas a sites de esquerda e manifestações recentes sobre o modelo que pretende colocar em curso no país se Lula ganhar as eleições deste ano. “Vamos criar as bases para o nosso projeto socialista”, diz, além de citar o “momento histórico” que a esquerda vive na América Latina.

No caso dos países vizinhos, ele parece obcecado em pintar a América de vermelho. Estabelece correlações o tempo todo — inclusive com o que chama de falência do modelo capitalista no continente americano. Dirceu está cada vez mais parecido com o guerrilheiro que usava codinomes clandestinos, treinava em Cuba e queria implantar a ditadura do proletariado.

Enaltece da vitória do jovem incendiário Gabriel Boric, no Chile, a Alberto Fernández, na Argentina, além de Venezuela, Peru, Bolívia, Cuba e Nicarágua. Recentemente, passou a citar pesquisas que indicam o favoritismo, na Colômbia, do ex-guerrilheiro terrorista do M-19 Gustavo Petra. A avaliação de Dirceu é que, se a direita cair na Colômbia, em março, Bolsonaro ficará isolado no continente — o candidato conservador é Óscar Iván Zuluaga, discípulo de Álvaro Uribe. A tendência, avalia, é que os jovens se inspirem no que ocorre lá fora para derrotar o presidente brasileiro.

Em sua última aparição nas redes sociais, no último dia 22, Dirceu discorreu longamente sobre algumas de suas ideias embalsamadas, numa sala da Rua Silveira Martins, sede do PT na capital paulista. Ele foi entrevistado em vídeo pelo Sindicato dos Engenheiros do Estado do Rio de Janeiro. Pouco antes do Natal, também participou de uma entrevista ao site de esquerda Opera Mundi. Algumas das principais frases estão abaixo.

O camisa 10 de Lula

Na última quarta-feira, 26, Lula foi entrevistado pela rádio CBN do Vale do Paraíba, no interior paulista. Uma das principais dúvidas dos jornalistas era se a ex-presidente Dilma Rousseff reapareceria em um eventual futuro mandato. Ele foi direto: não. O motivo: “O tempo passou e tem muita gente nova no pedaço”. Gente nova não é exatamente o termo correto — ele quis dizer que manteria distância da equipe de Dilma e de quem comandou o PT até a chegada da amiga Gleisi Hoffmann.

No próprio PT, a avaliação é que Dirceu sonha em reassumir a direção da legenda se Lula for eleito

Lula e Dirceu conversam com frequência por videochamadas. Dirceu mora em São Paulo, num apartamento no bairro de Perdizes, na zona oeste, onde passa por um tratamento médico. Mas tem rodado diversos Estados desde abril do ano passado, costurando alianças regionais. Uma das missões mais recentes foi se envolver na queda de braço com o PSB, em que tem como aliado o prefeito do Recife, João Campos, filho de Eduardo Campos — morto em acidente aéreo, em 2014.

Também parece obcecado em montar chapas de deputados federais. Esse parece ser o seu papel na eleição: dominar o Congresso Nacional. “Uma coisa é eleger o Lula. Outra é formar uma bancada expressiva que o ajude a mudar a estrutura política do país e o capital financeiro”, disse, em uma live recente.

No próprio PT, a avaliação é que Dirceu sonha em reassumir a direção da legenda se Lula for eleito. Com a caneta na mão, pretende fazer a máquina partidária voltar a inchar com a ação direta nos centros acadêmicos universitários — onde a lavagem cerebral acontece desde muito antes de o PT nascer —, no movimento negro e de gênero e no reaparelhamento dos sindicatos — o retorno do imposto sindical é peça-chave.

Mas e a corrupção generalizada, o impeachment de Dilma Rousseff, as prisões de boa parte da cúpula do partido? “Tudo isso está desmoralizado, o mensalão e a Lava Jato”, diz. “Não perdemos a eleição, fomos tirados à força. Se houvesse resistência, ocorreria um golpe militar. Depois, veio a presença ostensiva de militares na vida política. Espero que voltem aos quartéis.”

Esse é o mundo de José Dirceu.

Revista Oeste