sábado, 30 de novembro de 2019

Contra usina nuclear em Pernambuco, índios buscam até o papa

Quase uma década após os primeiros estudos, o governo federal pretende reativar o plano para construção de uma usina nuclear em Itacuruba, a 481 km do Recife, no sertão de Pernambuco. A área na beira do rio São Francisco localiza-se numa região cuja demarcação do território é requerida por comunidades indígenas e quilombolas.

A intenção de retomada do projeto nuclear, que prevê a instalação de seis reatores em um terreno de 500 hectares com investimento privado de US$ 30 bilhões em até dez anos, reacendeu a polêmica que estava adormecida em Pernambuco desde 2010.

Além dos povos indígenas pankará e tuxá e da comunidade quilombola Poços dos Cavalos, parte significativa da Igreja Católica tem se posicionado contra o empreendimento no semiárido pernambucano, região mais pobre do estado, por temer algum tipo de acidente nuclear.



Índios pankará dançam o tore em suas terras pedindo protecao para que a usina nuclear não seja instalada
Índios pankará dançam o tore em suas terras pedindo
protecao para que a usina nuclear não seja instalada 
Leo Caldas/Folhapress

Itacuruba tem hoje apenas 4.700 habitantes. Tinha o dobro até 1988, quando a população precisou ser retirada da cidade para realização de uma inundação programada pela Chesf (Companhia Hidro Elétrica do São Francisco) e a consequente construção da barragem de Itaparica.

A cacique Pankará Lucélia Cabral declara que o projeto, com previsão de geração de 6 mil empregos diretos quando estiver em pleno funcionamento, significa a morte para o povo indígena. Ela diz que as 300 famílias Pankará que vivem no território precisam lutar com todas as forças contra a construção.

“É a morte para nós. É preciso lembrar que parte da nossa história e da nossa vivência está embaixo da água. Mais uma vez, somos jogados feito uma bola para aqui e acolá. É como se a gente não tivesse significado e importância”, declara. Lucélia ressalta que, apesar de o tamanho do terreno para instalação da usina nuclear ser de 500 hectares, existe uma área de segurança que é bem maior.

“Compreende todo o território que estamos brigando para ser demarcado. Isso aqui pertence aos povos indígenas e quilombolas. Não aceitamos que nos matem assim”, afirma a cacique.

Distante apenas um quilômetro da fazenda que deve ser desapropriada até 2021 para instalação dos reatores, há uma vila de casas de taipa e sem energia onde vivem 78 famílias do povo Tuxá Campos. “Imagine que um reator desse apresente qualquer tipo de defeito. Não sobra um peixe no rio, não sobra nada. Não podemos correr esse risco. Já tivemos exemplos de acidentes gravíssimos no mundo. O rio é a fonte de tudo”, diz a cacique Tuxá, Evani Campos.


Nas missas de domingo, na igreja Nossa Senhora do Ó, em Itacuruba, o padre Luciano Aguiar não deixa de tocar no assunto. “Eu sempre falo sobre o tema. Somos contra a usina porque acreditamos na defesa da vida. O povo indígena  será deslocado. Alguns já vivem em estado de miséria”. 

No dia 13 de outubro, o religioso entregou pessoalmente uma carta ao papa Francisco após cerimônia de canonização de Irmã Dulce, no Vaticano. “Tive sorte. Consegui entregar a ele uma carta que fala dos problemas da instalação da usina aqui. Um assessor já entrou em contato conosco e estamos esperando para falar com o papa”, relatou o padre.

O governo federal também precisa enfrentar um entrave legal para implantação dos reatores em Itacuruba. A Constituição de Pernambuco, em seu artigo 216, veta a instalação de usinas nucleares no estado “enquanto não se esgotar toda a capacidade de produzir energia hidrelétrica e oriunda de outras fontes”. O deputado estadual Alberto Feitosa (Solidariedade), o maior defensor do projeto na Assembleia Legislativa de Pernambuco, é autor de uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição)  para possibilitar a instalação do empreendimento.

“Estamos falando de US$ 30 bilhões de investimentos em dez anos. São seis mil empregos diretos. É algo transformador para o desenvolvimento social e econômico daquela região. As pessoas precisam ter mais informações. Com os dados corretos nas mãos, é difícil ser contra”, diz.  Ele tem realizado audiência públicas para debater o tema. A PEC deve começar a tramitar no início do próximo ano.

Professor aposentado da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), o físico Heitor Scalambrini é uma das principais vozes do meio acadêmico contra a construção. Ele diz que existe um discurso infundado na tentativa de minimizar os riscos de acidentes. Ressalta também que as pessoas da região não vão conseguir empregos por falta de capacitação.

“Por que então vamos correr o risco de um acidente nuclear com vazamento de radiação no rio São Francisco se não precisamos para atender nossa demanda por energia elétrica, e que hoje o nuclear somente contribui com 1,1% de toda potência elétrica instalada no país?”, questiona.

No dia 11 de outubro, o presidente da Eletronuclear, Leonam dos Santos Guimarães, e o senador Fernando Bezerra Coelho, líder do governo Bolsonaro no Senado, apresentaram detalhes do projeto de Itacuruba ao governador de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB).

O governador nunca fez defesa do empreendimento em público. "Estamos sempre à disposição para o diálogo, sobretudo quando há a possibilidade de avançarmos na geração de emprego e renda”, afirmou, após o encontro, ressaltando que existe o impedimento legal para a construção.

O Ministério Público Federal em Pernambuco instaurou procedimento preparatório para acompanhar a possibilidade de instalação da usina nuclear.

A Eletronuclear não quis se posicionar diretamente sobre a implantação dos reatores em Itacuruba. Informou apenas que existe a perspectiva de que sejam construídas novas usinas nucleares no país. Comunicou que o PNE 2030 (Plano Nacional de Energia 2030) previa a construção de mais quatro unidades nucleares. O PNE 2050, que revisa o plano anterior, deve ser publicado até o fim deste ano. “Já foi feito um levantamento que encontrou 40 áreas aptas em todo o país. O PNE 2050 indicará as áreas prioritárias para prosseguir com a escolha dos sítios finalistas”, diz a nota da Eletronuclear.

Expansão nuclear
Em setembro, Folha mostrou que, para levar o plano nuclear adiante, foram consideradas plantas em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Alagoas, Pernambuco e Sergipe.

A ideia é passar dos atuais 4 gigawatt de capacidade instalada de geração nuclear para cerca de 8 gigawatt até 2050.

Quatro grupos estrangeiros estão na disputa: Rosatom (Rússia), China National Nuclear Corporation (China), EDF (França) e Westinghouse (EUA). Vencerá aquele que tiver maior capacidade de financiamento para arcar com as obras bilionárias. Hoje, o país possui duas usinas em operação (Angra 1 e 2) que respondem por cerca de 1,1% da geração nacional de eletricidade. A conclusão de Angra 3, com previsão de gerar energia em 2026, vai consumir US$ 3,8 bilhões.

Esse movimento de expansão da matriz nuclear ocorre na contramão de nações como Japão e Alemanha, que estão desativando usinas depois do acidente de Fukushima, em 2011. A Alemanha já anunciou que desligará seu parque até 2022.

João Valadares, Folha de São Paulo

‘É preciso ensinar às pessoas o que é uma informação confiável’, diz fundador da Wikipédia

Esperança. Para Wales, acesso livre ao saber pode ajudar a resolver pobreza


Ele já criou o quinto site mais visitado do mundo, disponível em 288 línguas e utilizado por mais de 600 milhões de pessoas – a Wikipédia, enciclopédia online que há 18 anos é construída por uma rede de voluntários espalhados pelo planeta. Agora, o americano Jimmy Wales, 53 anos, quer reconstruir a experiência de uma rede social. No início deste mês, ele colocou no ar o WT:Social, uma plataforma em que as pessoas podem interagir sem ter de visualizar anúncios. 
Mais: a rede promete não vender os dados dos usuários e dar a eles o poder de editar títulos de reportagens que enganem seus contatos, reportando problemas. Por enquanto, há 350 mil usuários cadastrados e outros 200 mil na fila de espera, segundo Wales. É possível pular a fila convidando amigos para a rede ou pagando uma assinatura, como num serviço de streaming – R$ 25 por mês ou R$ 250 por ano. Um grupo de conversas em português já tem mais de 7 mil pessoas. 
“Precisamos que uma a cada 200 pessoas contribua para garantir a sustentabilidade. Acredito que as pessoas estão prontas para uma alternativa às redes sociais focada em qualidade, não em cliques”, diz o americano ao Estado – ele esteve no Brasil na última semana para participar do CASE, evento organizado pela Associação Brasileira de Startups (ABStartups). Durante a entrevista, também falou sobre política, democraciadesinformação notícias falsas. “As pessoas não querem compartilhar coisas falsas, elas compartilham algo sobre seus sentimentos, medos e opiniões”, diz. 

Por que precisamos de uma nova rede social? 

As pessoas estão cada vez mais insatisfeitas com as redes sociais que já existem e o dano que essas redes estão causando à sociedade, ao diálogo e ao jornalismo. Acredito que as pessoas estão prontas para uma alternativa, focada em qualidade, não em caça de cliques. 

A vasta maioria das redes sociais funciona com base em anúncios. Como o WT Social será sustentável sem anúncios? 

A Wikipédia se baseia nessa ideia: se aquele trabalho importa para um grupo de pessoas, elas podem contribuir financeiramente. Não é uma multidão, mas tem sido suficiente para a Wikipédia nos últimos anos. Pode ser parecido com as redes sociais: o custo de armazenamento em servidores nunca esteve tão barato. Além disso, as empresas de redes sociais gastam muitos em vendas e otimização de publicidade. Podemos economizar nessas áreas. O WT:Social é um teste. Será uma surpresa se a rede for muito popular e ninguém aceitar pagar por ela – porque não foi isso o que aconteceu com a Wikipédia. E não precisamos ser o número 1: se servirmos bem a 20 milhões de usuários, já seremos um sucesso, porque atenderemos a uma comunidade. 
'As pessoas estão cada vez mais insatisfeitas com as redes sociais e o dano que elas causam à sociedade, ao diálogo e ao jornalismo', diz Wales

Parece algo parecido com o que Mark Zuckerberg disse sobre o novo propósito do Facebook, que é conectar comunidades. O que o sr. acha disso? 

É interessante. A despeito das minhas críticas, não odeio Mark Zuckerberg. Acredito nele quando ele fala, de um jeito bem idealista, que quer conectar as pessoas do mundo. O problema é que há efeitos colaterais que ele não antecipou. O Facebook tem problemas complicados, difíceis de resolver dado seu modelo de negócios. 

Como pretende evitar que sua rede seja inundada por notícias falsas? 

Ainda somos uma rede jovem. Estamos no ar há quatro semanas. Mas pense o seguinte: só teremos dinheiro se entregarmos um produto de qualidade, então temos de defendê-lo com unhas e dentes. É diferente de uma rede baseada na quantidade de cliques, que pode ter conteúdos problemáticos, mas clicáveis. Esse é o pilar fundamental. Também acredito que podemos ter um controle genuíno da comunidade. Na Wikipédia, se você entrar numa página e escrever algo racista, isso será deletado imediatamente, porque a comunidade está de olho. Nas redes sociais, porém, esse modelo é diferente: se alguém escreve algo racista, um funcionário terceirizado em algum canto do mundo terá de olhar para isso – e já existem muitos relatos de que esse é um emprego horrível, que causa traumas às pessoas. 

Antigamente, as pessoas diziam para não se confiar sobre em tudo que se lê na internet. Hoje, o problema da desinformação parece ser justamente esse. Como o sr. vê o assunto? 

É um conhecimento importante: até mesmo na Wikipédia há informações em que não se pode confiar – se um artigo carece de fontes, é bom desconfiar. Precisamos educar as pessoas sobre o que é uma informação confiável, uma notícia confiável. Teorias da conspiração surgem porque as pessoas não aprenderam a julgar o que é plausível ou não. É algo que precisa ser ensinado na escola, para crianças e adolescentes, para não se tornarem vulneráveis ao que não faz sentido. 

Não incomoda o sr. o fato de que há erros na Wikipédia? 

Eu consigo ficar bem com isso porque sei o quanto a comunidade se esforça para resolvê-los. Estaria mais preocupado se descobrisse que perdemos o controle para bots russos ou desinformação. A comunidade se autocontrola: temos tradições e costumes, padrões de checagem e de escrita. Eram coisas que achei que eram importantes e agora fazem sentido. Por exemplo: não temos no software da Wikipédia nenhum sistema de votação. Há um sistema de referendo, mas toda opinião precisa ser justificada. Imagine que há uma discussão, por exemplo, para deletar o artigo sobre Donald Trump. Dizer que ele é um idiota não é uma boa razão para deletar um artigo. Falta de informações ou viés são. Se um sistema é resolvido apenas por algoritmos, é preciso ser cuidadoso porque eles sempre podem ser alvos de manipulação, como robôs automatizados. É preciso debater. 

O sr. foi conselheiro do The Guardian. Como vê o momento do jornalismo? 

É um momento complexo: corre a ideia de que a verdade não é mais algo que une a sociedade, de que é preciso entender os fatos para depois debater sobre o que deve ser feito. Mas o que sempre digo é que os seres humanos são os mesmos há 5 mil anos. Somos macacos espertos: somos incríveis, temos falhas, somos complicados. Entendo que exista pressão nas empresas jornalísticas: fazer bom jornalismo dá mais trabalho do que criar listas. Além disso, há o problema de que um anúncio programático em uma boa matéria ou em um site de notícias falsas vale a mesma coisa. É uma competição complicada. Mas há bons sinais: têm crescido o número de assinaturas e contribuições financeiras de leitores aos jornais. Na Inglaterra, o Guardian conseguiu ter lucro pela primeira vez em anos – e tenho parte de culpa nisso, porque sugeri a eles que pedissem dinheiro para os leitores. Tem funcionado, mas é só o começo. Me preocupo com o jornalismo local, jornais regionais têm fechado no mundo todo. É uma boa época para ser cunhado do prefeito de uma cidade pequena e ter uma empreiteira, porque não há jornais locais para fiscalizar. Todas as sociedades enfrentam a corrupção e precisamos de jornalistas para combatê-la. 

No Brasil, um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) pode passar a responsabilizar sites e plataformas de internet sobre conteúdos de terceiros, o que poderia fazer a Wikipédia, o Facebook ou o Google serem processados. Por outro lado, há a defesa de que isso ajudaria a evitar notícias falsas. Como o sr. vê o assunto? 

É um tema complicado. Pense no Facebook: ele é desenhado em torno de interações sociais, não da qualidade. Se eu quiser compartilhar uma notícia falsa com meus amigos, o Facebook não deveria ter o poder de me parar. Imagine se Zuckerberg dissesse, há cinco anos, que ele ia decidir o que pode ou não ser publicado na plataforma. As pessoas ficaram malucas! Acredito que queremos preservar uma internet aberta, com a possibilidade de compartilhar o que queremos nas plataformas. Até porque acredito que as pessoas não querem compartilhar coisas falsas. Elas compartilham seus sentimentos, medos e opiniões. É difícil dizer que o Facebook têm culpa sobre os comentários dentro da plataforma, mas eles têm responsabilidade. Há uma boa metáfora sobre isso: se você entra num bar e alguém te dá um soco, o bar não pode ser processado por isso. Não há culpa genuína. Mas há responsabilidade: se alguém está bêbado e se comportando mal, seria bom parar de servir álcool para aquela pessoa. Com a internet, funciona da mesma forma. 
Piada na Wikipédia trocou foto do Secretário de Defesa dos EUA pela de goleiro da seleção americana após partida 'sem gols'

A Wikipédia é mantida por uma rede de voluntários, pessoas com tempo livre – o que pode torná-la desigual. Como conseguir fazer uma enciclopédia que respeita a diversidade? 

É algo que nos preocupa bastante. Um exemplo é de que 80% da comunidade de voluntários é homem. E muita gente faz da Wikipédia um hobby. Em países pobres ou em desenvolvimento, entendo que a prioridade é trabalhar para comprar comida para sua família, não debater com estranhos pela internet. Não temos como resolver todos os problemas do mundo, mas podemos ajudar com progresso. Acredito que o acesso a conhecimento livre é uma das soluções para a pobreza – pense no impacto que podemos causar a uma criança com um smartphone. Hoje, não é fácil contribuir para a Wikipédia a partir de um celular, mas o público do site aumentou – e por isso, o reconhecimento de quem contribui também, porque o impacto é maior. Há pessoas que gastam horas jogando videogames. Gostaria que elas gastassem parte disso ajudando a criar e editar artigos na Wikipédia, porque o impacto seria enorme. 

O que acha de gente que usa a Wikipédia para fazer piada, mudando, por exemplo, a página de um time de futebol? 

Páginas de pessoas famosas, como Donald Trump ou qualquer presidente, são protegidas. Apenas membros da comunidade que já têm histórico de contribuições podem editá-las. Agora, quanto a piadas… oficialmente, digo que as pessoas não deveriam fazer isso, mas há intervenções engraçadas. Certa vez, em uma Copa do Mundo, o goleiro dos EUA fez uma partida sensacional. Aí alguém alterou o artigo do Secretário da Defesa americano, trocando a foto pelo do goleiro. Ficou apenas por um minuto no ar, mas foi engraçado. Mas a maior parte dos trolls da internet não têm graça. 
Bruno Capelas - O Estado de S. Paulo

‘Não há contaminação dos julgadores’, diz João Pedro Gebran Neto, relator da Lava Jato no TRF-4

Desembargador João Pedro Gebran

Neto afirma que decisão do tribunal 

de rejeitar recurso de Lula não afronta

o Supremo Tribunal Federal e que 

debate sobre prisão em segunda

instância está contaminado pelo

momento político




Desembargador João Pedro Gebran Neto, relator da Lava Jato no TRF-4. 
Foto: Sylvio Sirangelo/TRF4

“O TRF-4 não afrontou o STF.” A afirmação do desembargador federal João Pedro Gebran Neto, o relator em segunda instância da Operação Lava Jato, no Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, busca um fim para o que ele enxerga como falsa polêmica: a de que houve um enfrentamento ao Supremo Tribunal Federal na decisão que ampliou a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, de 12 para 17 anos de prisão no processo do sítio de Atibaia.
A defesa de Lula tinha pedido nulidade da condenação porque a 13.ª Vara de Curitiba (primeira instância) não havia aplicado prazo distinto para delatores e delatados entregarem suas alegações finais no processo, conforme decisão recente do STF, em outra ação penal da Lava Jato. “O que se fez é aplicar o entendido do Supremo, em conformidade com os precedentes da existência e demonstração de prejuízo”, afirma.
Pouco afeito a entrevistas, Gebran Neto conversou com o Estadão por e-mail dois dias após a nova condenação de Lula, defendeu a execução da pena em segunda instância como uma medida “civilizatória”, enalteceu os avanços pós Lava Jato no combate à corrupção e à impunidade no Brasil e rebateu acusações de que os julgamentos da operação têm conotação política.
“Tampouco há contaminação ideológica dos julgadores”, afirma.
Leia a íntegra da entrevista.
O TRF-4 ‘afrontou’, como disse a defesa de Lula, o Supremo ao negar a tese de regra geral retroativa defendida por réus, com base em entendimento da Corte sobre prazo diferenciado para delatores e delatados nos processos penais?
Com certeza o TRF-4 não afrontou o STF e nunca teve qualquer interesse em polemizar sobre o tema. O que se fez, e me parece claro nas manifestações e votos, é aplicar o entendido do STF, em conformidade com os precedentes da existência e demonstração de prejuízo. Aliás, o STF estava modulando os efeitos de sua decisão, mas não concluiu o julgamento. Assim, aplicou-se o entendimento em consonância com os precedentes históricos, seja no tocante à eficácia para o futuro das novas normas processuais, seja no tocante à ausência de prejuízo. De momento, não há decisão em repercussão geral ou mesmo efeito suspensivo concedido nos processos em trâmite na Suprema Corte, cabendo aos tribunais inferiores examinarem o caso concreto.
O julgamento da apelação sobre o caso do sítio de Atibaia foi político, como criticaram as defesas dos réus?
Em verdade, nenhum julgamento relacionado à Operação Lava Jato, como de resto nenhum outro processo, tem conotação política. Tampouco há contaminação ideológica dos julgadores. Como se procurou destacar nos votos, somente os fatos imputados aos réus são objeto do julgamento, segundo as provas existentes nos autos. Magistrados não julgam pessoas e suas histórias de vida, mas condutas específicas, tudo conforme o acervo probatório. Aliás, em meu voto cito precedente da ministra Cármen Lúcia fazendo exatamente essa referência. A fixação de tese de um papel do Judiciário de antagonismo aos réus é bastante antiga, mas neste caso é seguramente falaciosa.
Como vê as sucessivas tentativas das defesas de réus da Lava Jato de atribuírem suspeição aos juízes do caso? Tanto o senhor, como o desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores, o ex-juiz Sérgio Moro e a juíza Gabriela Hardt foram alvo de questionamentos…
Do ponto de vista jurídico processual, acho absolutamente natural que os réus utilizem-se dos meios de defesas que entenderem pertinentes. Assim, não há qualquer estranhamento quando alguém recorre ou interpõe medidas como exceções de competência ou mesmo de suspeição. Aliás, no âmbito da Lava Jato, o tribunal já julgou 45 processos de mérito e mais de 900 incidentes, inclusive as exceções de suspeição, cabendo ao Poder Judiciário tomar as decisões de acordo com os fatos, com as provas e com o ordenamento jurídico.
De outro lado, vejo que há uma tentativa intensa de imputar aos magistrados uma atuação política ou ideologizada, como se estivessem a serviço de alguém ou atuando com objetivos outros, que não simplesmente realizar seu ofício da melhor forma possível. E isso é um equívoco e um desserviço para a sociedade. Tentar arranhar qualquer dos pilares do Estado não auxilia na construção de um País melhor. Precisamos de boas, respeitadas e valorizadas instituições.
Como viu a mudança de entendimento do Supremo em relação à execução provisória da pena em segundo grau e quais suas convicções sobre o tema?
Minha compreensão sobre o tema é antiga, antecedendo inclusive aos julgamentos do STF, como é possível ver nos votos que proferi ao longo dos anos, reconhecendo a possibilidade da execução da pena após o julgamento em segunda instância. Essa antecipação do paradigma no TRF-4 (o tribunal redigiu em 2016 uma súmula sobre a aplicabilidade da prisão em segundo grau) ocorreu porque, naquele tempo, era visível a mudança que o STF faria em sua jurisprudência. Todavia, recentemente, a Suprema Corte voltou a firmar jurisprudência em desfavor da execução após julgamento em segundo grau. Compreende-se e respeita-se. Há argumentos bons e fortes em favor da tese recentemente chancelada pelo Supremo. Mas, segundo compreendo, os fundamentos jurídicos e sociais em sentido contrário são igualmente bons e fortes.
Na minha perspectiva de edificação de uma sociedade mais justa e segura, visando acabar com as graves mazelas da violência, da insegurança, da impunidade de qualquer tipo de criminalidade, inclusive, dentre as mais eficazes medidas talvez esteja a execução da pena, após o julgamento em segundo grau. E os recentes debates no Congresso Nacional sobre o tema certamente recolocarão o Brasil novamente nesse caminho, em sintonia com a grande maioria dos países desenvolvidos do mundo.
Essa é uma perspectiva civilizatória, onde a pena serve como prevenção especial, punindo as pessoas pelos crimes que praticaram, mediante penas justas impostas, após o devido processo legal, mas também como meio de prevenção geral, onde a sociedade possa visualizar que às condutas criminosas são impostas sanções, em tempo e modo razoáveis. E isso em nada desnatura o objetivo de reeducação do condenado que a sanção penal também deve ter. Aliás, talvez evite que tenhamos tantas pessoas respondendo a processos penais, ou mesmo presas. Recordo os estudos de Gary Becker, vencedor do Prêmio Nobel de Economia de 1992, que apontou que a probabilidade de detenção e de aprisionamento como elementos que influenciam o criminoso na tomada de decisão. Quanto maior a impunidade, maior o estímulo para a prática de ilícitos, principalmente quando os ganhos são muito elevados. Inconscientemente, ou, às vezes, até mesmo conscientemente, é assim que são tomadas decisões de cometer, ou não, crimes, ponderando benefícios e custos, como destacado em recente artigo de Érica Gorga, “Criminalidade e prisão em segunda instância”.

Gebran Neto durante sessão no TRF-4, em Porto Alegre. Foto: Divulgação/TRF-4

O direito penal não pode servir apenas para punir os hipossuficientes, cujas condenações, por vezes, transitam em julgado no primeiro grau de jurisdição. Mas, sobre esse aspecto, não se vê manifestações tão inflamadas, servindo os hipossuficientes apenas como estatística para fortalecer o discurso dos mais favorecidos. Tampouco serve o Direto Penal para colocar o rótulo de condenado em quem praticou crime, sem que haja o cumprimento da correspondente sanção. Os acusados têm direitos fundamentais, inclusive o direito a duplo grau de jurisdição, mas a sociedade igualmente tem direitos fundamentais, dentre eles a segurança e a proteção eficiente contra aqueles que cometem crimes. O direito fundamental à razoável duração do processo deve ser atendido tanto no processo civil, como no processo penal, e, em qualquer dos casos, é um direito fundamental que vale para ambas as partes, no processo penal, sociedade e réus.
A vedação à execução da pena após o trânsito em julgado acaba por fragilizar em demasia várias dessas perspectivas, criando direito a quatro graus de jurisdição, num processo penal que já é moroso e que tramita perante um Poder Judiciário sobrecarregado com quase 80 milhões de processos, segundo o Conselho Nacional de Justiça. São vários os exemplos de fracasso pela morosidade, como apontado por vários ministros do Supremo Tribunal Federal no recente julgamento sobre o início da execução da pena após o julgamento em segundo grau.
Esse debate, hoje no Brasil, talvez esteja contaminado pelo momento político, embora devesse ter uma visão de Estado.
A Lava Jato marca uma mudança na Justiça criminal brasileira?
Não tenho dúvida que a Operação Lava Jato é um marco importante, representando uma viragem paradigmática na jurisdição criminal brasileira, como já fora antes a Ação Penal 470 do Mensalão. Mas isso nunca foi um objetivo, nem mesmo algo pensado para ser assim. É uma consequência dos fatos. Vejo como algo crescente, que começou com investigações ordinárias e ganhou desdobramentos de diversas ordens, mas inimagináveis. Creio que o Brasil já teve outras oportunidades em desvelar sistemas de corrupção sistêmica, e isso gerou uma curva de aprendizagem que, somada a algumas mudanças legislativas, como a lei de combate às organizações criminosas e a possibilidade de colaboração premiada negociada, para ficar num exemplo, bem como uma nova postura do Poder Judiciário nas suas diversas instâncias, propiciou uma evolução significativa no combate à corrupção e à impunidade.
A Lava Jato e todo movimento anticorrupção e anti-impunidade gerado a partir dela vivem um momento de contraofensiva na avaliação do sr.?
Não tenho essa percepção. Como espectador e cidadão, vejo que nos últimos seis anos o sistema judicial brasileiro avançou muito no combate à corrupção e à impunidade, e isso não se resume apenas à Lava Jato, muito menos aos processos com origem em Curitiba. Temos diversos desdobramentos da Lava Jato em outras regiões, que igualmente recebem esse nome, mas que tratam de fatos distintos, como os processos em tramitação no Rio de Janeiro, em Brasília, em São Paulo e nos Tribunais Superiores. Para além desses, também há iniciativas importantes na Justiça Estadual de vários Estados no combate à corrupção e à impunidade. São novos ventos de esperança na construção de um País mais justo e mais probo. E, nessa perspectiva de combate à ilicitude, várias conquistas foram atingidas, com a condenação e prisão de pessoas que até então se achavam acima da lei, e a recuperação de uma parcela significativa dos recursos desviados. Estes avanços jamais retrocederão.
Porém, é absolutamente natural que aqueles que se sentem atingidos pelo combate à impunidade, ou que acreditem que possam vir a ser atingidos, tentem refrear esse movimento. Isto já ocorreu em outros países que vivenciaram momentos semelhantes. Caberá ao Estado brasileiro e à sociedade de modo mais específico posicionarem-se em favor dos elevados valores constitucionais, tais como a democracia, a liberdade, a moralidade administrativa, a edificação de uma sociedade mais justa e humana, fundada na pluralidade de ideias e na igualdade de direitos. Estou convicto de que, desde a Constituição Federal de 1988, caminhamos nesse sentido. Talvez mais devagar do que gostaríamos ou mesmo por caminhos erráticos, mas certamente avançamos muito nos últimos 30 anos.
A advertência dada ao procurador Deltan Dallagnol, a aprovação da nova Lei de Abuso de Autoridade, o esvaziamento do projeto anticorrupção do ministro Sérgio Moro no Congresso foram derrotas recentes. É a pior fase desses seis anos de Lava Jato?
Cada episódio tem seu foro adequado de discussão, mas não faço essa avaliação de pior ou melhor momento da Lava Jato. Como magistrado, defendo minhas convicções com aquilo que vejo no processo. Porém, após quase seis anos, vejo com naturalidade a existência de avanços e retrocessos no combate à impunidade e à corrupção. Certamente teremos diversos outros avanços e alguns retrocessos. Outras vezes correções de rumos serão necessárias.
De toda forma, vejo que nesse período o Brasil demonstrou muita maturidade, com solidez das instituições, com liberdades públicas respeitadas e ordem social. Desde 1988 vivemos num Estado que ainda é desigual e injusto, mas que se aperfeiçoa na busca de um lugar ao sol. Acredito que avançamos num bom caminho e as dificuldades são próprias da democracia e da multiplicidade de opiniões e interesses. Os aspectos positivos devem ser extremamente valorizados. E é exatamente isso que passará para a história: uma sociedade que passou por grandes modificações no cenário político, social e jurídico, a demonstrar que o jovem País começa a atingir a idade adulta, enfrentando seus próprios problemas e dramas, mas sem convulsões, no seu mais longo período de democracia e paz.

Ricardo Brandt e Fausto Macedo, O Estado de São Paulo