quinta-feira, 28 de novembro de 2019

"Na Netflix etc.: 6 suspenses de roer as unhas", por Isabela Boscov

Segredos de um Crime

Onde assistir: Netflix
Na cena de abertura, com a câmera correndo pelo imenso armazém atrás do detetive Malcolm (Joel Edgerton) enquanto ele persegue um bando de criminosos em fuga, pode-se até ter a impressão de que este é um clássico filme de policiais versus bandidos. Mas o território deste suspense australiano escrito pelo próprio Joel Edgerton é outro: um tremendo dilema moral. Que, enquanto progride e se desdobra, vai arruinando vidas. Durante a batida no armazém, Malcolm toma um tiro. É salvo pelo colete a prova de balas. Mas, entre o hematoma e o susto, de noite ele exagera nos drinques. Dirigindo alcoolizado e cansado de volta para casa, Malcolm sem querer dá um peteleco com o retrovisor do carro numa bicicleta, e fica atordoado quando percebe que o ciclista, um menino de 9 anos, foi ao chão com uma fratura no crânio. Malcolm chama a ambulância – mas, quando a atendente pergunta se ele foi parte do acidente, ele vacila e diz que não, que apenas achou o garoto. Esse é só o ponto de partida: daí para a frente, o rolo só aumenta, com a entrada na questão de dois outros policiais. O detetive veterano Carl (Tom Wilkinson), um alcoólatra sóbrio de terno sempre amarrotado, imediatamente entra em modo de controle de danos quando vê que Malcolm está envolvido. Já seu parceiro, Jim (Jai Courtney), um novato caxias, acha que a coisa toda não se encaixa, e não quer largar do osso – inclusive porque está encantado com a mãe da vítima. Tenso, cheio de eletricidade, valorizado pelos ótimos desempenhos centrais e muito bem dirigido, é uma daquelas descobertas que compensam o garimpo.
Segredos de um Crime Felony, 2013
Felony, 2013 (Califórnia/Divulgação)

Culpa

Onde assistir: Looke, NOW
No centro de atendimento de emergência, o policial Asger Holm responde com enfado aos telefonemas – um sujeito consumiu drogas demais e agora está apavorado; outro diz ter sido assaltado por uma mulher que pulou para dentro de seu carro. Uma nova ligação a princípio lhe parece trote, porém logo se revela urgente e possivelmente terrível: balbuciando na linha, como se estivesse falando com a filha pequena, uma mulher dá a entender que foi raptada. Mais: conhece seu raptor, está sendo levada para um lugar remoto e teme pela menina e pelo bebê que deixou a sós em casa. Em sua estreia na direção, o dinamarquês Gustav Möller não se afasta em nenhum momento do rosto severo e expressivo do ator Jakob Cedergren, e também não sai do seu único cenário. Toda a ação consiste de Holm falando ao telefone com outros centros de emergência, com os policiais de uma viatura, com seu chefe, com seu parceiro, com a raptada e, a certa altura, também com o raptor – e, nos momentos em que o diretor demonstra a extensão da sua habilidade, com Mathilde, de 6 anos, a menina que está sozinha em casa e pinta para Holm uma cena perturbadora: uma briga horrível entre os pais, uma faca, a mãe sendo puxada pelos cabelos. Acelerado pela preocupação, pelo tempo que corre e por arrependimentos passados, Holm – assim como o espectador – vai preenchendo as lacunas com a sua imaginação, com consequências que não pode prever porque, é claro, não conhece a totalidade dos fatos.
Culpa The Guilty/Den Skyldige, 2018
The Guilty/Den Skyldige, 2018 (Califórnia/Divulgação)

Infidelidade

Onde assistir: Amazon
Constance (Diane Lane) é uma mulher dos subúrbios ricos de Nova York que vive o conforto de seu casamento numa espécie de transe. Ela ama o marido, o filho e a sua casa. Não imagina que possa ter algum anseio por atender até o dia em que conhece um jovem livreiro francês (Olivier Martinez) que lhe acena com algo desconhecido: risco, duplicidade e um tipo de sexo que não tem nada a ver com afeto. Logo Constance estará se dividindo entre a cama dele e a sua, entre o desejo e a culpa. E seu marido inseguro e titubeante (Richard Gere, em uma boa pausa nos seus tipos autoconfiantes) estará se perguntando qual a razão das sutis mudanças no comportamento da mulher. Tudo nos filmes do diretor Adrian Lyne – 9 1/2 Semanas de AmorAtração Fatal – é ao mesmo tempo acetinado e realçado, como num comercial que tivesse saído do eixo. De certa forma, isso serve bem ao seu filão. Por natureza, o melodrama gira em torno de um único grande tema: a repressão feminina. Ele fica bem mais interessante, contudo, quando é capaz de combinar o pólo oposto – o da perda súbita e tempestuosa de controle. Lyne segue essa linha aqui e, espertamente, ele a aplica a seus dois protagonistas, a mulher e o marido.
Infidelidade Unfaithful, 2002
Unfaithful, 2002 (Fox/Divulgação)

Os Suspeitos

Onde assistir: Amazon, Looke, Telecine
O diretor Denis Villeneuve, de A Chegada e Blade Runner 2049, foi sempre um adepto do garrote: ele laça a garganta do espectador e puxa a corda bem devagar, tirando-lhe o ar fração a fração. Não por sadismo, mas para irmaná-lo com seus personagens a partir do instante em que estes são mergulhados em algum pesadelo real que se torna cada vez mais denso. Aqui, esse instante é aquele em que os casais Dover (Hugh Jackman e Maria Bello) e Birch (Terrence Howard e Viola Davis) descobrem que suas filhas pequenas sumiram da porta de casa. A polícia prende Alex Jones (Paul Dano), um rapaz com problemas mentais que estacionou seu trailer ali por algumas horas. Mas Alex não confessa. No trailer, não há vestígio das duas meninas. A tia dele (Melissa Leo) jura que ele é incapaz de violência. O detetive Loki (Jake Gyllenhaal) é obrigado a soltá-lo. E, enquanto a incerteza sobre o destino das meninas prossegue e Loki investiga outras pistas e outros suspeitos, o devoto Dover julga que os indícios contra Alex são fortes o bastante: rapta-o e o tortura dias a fio. A violência contra uma criança leva a um terreno pantanoso: quanto é aceitável descartar as regras e avançar na escuridão? Em Os Suspeitos, há penumbra por toda parte. Ela está na fotografia do grande Roger Deakins e nas zonas de sombra que ela registra: a recusa inexplicável de Alex em falar, a atitude ambígua de sua tia, a repugnância de Dover pela própria ferocidade e o olhar ao mesmo tempo compassivo e discernidor do detetive tão bem interpretado por Gyl­lenhaal. É ele quem conduz a plateia para um mundo em que violência, mal e injustiça não são uma dimensão isolada das outras – são um abismo bem sob o chão em que se pisa.
Os Suspeitos Prisoners, 2013
Prisoners, 2013 (Paris/Divulgação)

Mar Aberto

Onde assistir: Amazon
Brigar com o marido ou a mulher nas férias já é um péssimo programa. Ter de fazê-lo boiando no meio do nada, sem perspectiva de resgate e com tubarões à espreita, é um pesadelo de proporções épicas, que Mar Aberto explora com precisão e com concentração de recursos. A história: casal sai para mergulhar, é esquecido pelo barco da excursão e luta para se manter à tona e inteiro. Os diretores Chris Kentis e Laura Lau (que são casados) passam a meia hora inicial anunciando essa tragédia com um vagar que beira o sadismo. Quando o inevitável finalmente acontece, eles mudam de marcha: o filme vira um contínuo de aflição, em que as possibilidades surgem para logo desaparecer, e a cada minuto são acrescidas de novas complicações – fome, frio, náusea, descontrole, exaustão, recriminação mútua. E, claro, tubarões, que rondam o casal sem nunca se revelar por inteiro. Os diretores transformam uma imensidão sem horizontes num espaço claustrofóbico, em que tudo muda o tempo todo para continuar exatamente igual. O céu e o oceano se confundem e se separam, o sol vai e vem, as ondas sobem e descem, e o resultado é sempre o mesmo: a mais completa desorientação psicológica e espacial, que termina por minar a resistência também da plateia.
Mar Aberto Open Water, 2003
Open Water, 2003 (LK-Tel/Divulgação)

Memórias Secretas

Onde assistir: Netflix
Vacilante e trêmulo, o octogenário Zev (Christopher Plummer) vaga pelo residencial para idosos sem saber onde está, turvado pela demência senil. Ainda assim, é a Zev que outro idoso, Max (Martin Landau), confia uma missão intrincada: Zev deve viajar para quatro cidades americanas e identificar qual dos quatro alemães que entraram nos país ao fim da II Guerra com o nome falso de Rudy Kurlander vem a ser o carrasco que matou a família deles no campo de extermínio de Auschwitz. Na carta que servirá de guia a Zev, Max explica que eles são as duas últimas pessoas capazes de reconhecer Kurlander. Como Max está preso a uma cadeira de rodas, cabe a Zev, o homem desmemoriado, retificar a história e impor a justiça ao criminoso, ainda que não se lembre nem quem é, nem por que o faz. Sob essa ironia, há uma reflexão amarga: em breve, frisa o diretor Atom Egoyan, todos os sobreviventes e todos os carrascos do genocídio judeu que ainda restam terão morrido; reatar cada fio dessa narrativa e reparar cada fragmento dela é uma tarefa urgente, ou seremos uma geração sem memória, tão desconectada de seu passado quanto Zev. Prepare-se: a reviravolta final, aqui, é das boas.
Memórias Secretas Remember, 2015
Remember, 2015 (Diamond/Divulgação)

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