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sexta-feira, 12 de dezembro de 2025
Mais um ‘show trial’ alexandrino, por Flávio Gordon
Um advogado impedido de falar, um relator que ou mente ou decide sem ler, um presidente que reage a argumentos com cassetete instituciona
O que se viu nesta segunda-feira, 9 de dezembro de 2025, na continuidade do julgamento da Ação Penal 2.693 — a peça acusatória que pretende enquadrar Jair Bolsonaro e exintegrantes de seu governo como autores de uma suposta “tentativa de golpe” — foi mais um capítulo na lenta degradação das formas legais no Brasil. Um episódio que, pela coreografia e pelo propósito, lembra cada vez mais os show trials (“julgamentosespetáculo”) da velha Rússia soviética.
O advogado de Filipe G. Martins, Jeffrey Chiquini, dirigiu-se à tribuna para fazer uma questão de ordem: pedia que o relator Alexandre de Moraes reconsiderasse a decisão arbitrária que havia proibido a defesa de exibir dois slides em sua sustentação oral. Um dos slides reproduzia uma tese jurídica antes defendida por Cristiano Zanin — hoje juiz da causa, então advogado de Lula no caso Zelotes — contra o uso de minutas apócrifas pela acusação. A defesa apenas pretendia lembrar ao tribunal a doutrina que o próprio magistrado já consagrara.
Ana Paula Henkel e 'A foto do regime'
Parecia impossível que o Ocidente, que observava o terror soviético de longe, pudesse algum dia ensaiar os mesmos gestos de silenciar, sufocar divergências e usar o Judiciário como extensão do poder político
H á datas que deveriam funcionar como vacina moral. Nesta semana, 8 de dezembro, completam-se mais de três décadas da dissolução da União Soviética, o desfecho de um regime que transformou repressão em rotina, censura em virtude e o Estado em juiz das próprias vontades políticas.
Foi em 1991, numa casa de campo na floresta nos arredores de Minsk, que três homens se sentaram diante de uma mesa improvisada e assinaram o atestado de óbito de um império.
Rússia, Ucrânia e Bielorrússia declararam no Acordo de Belavezha que a URSS deixaria de existir. Dezesseis dias depois, em 26 de dezembro, o Soviete Supremo formalizou o fim e a bandeira vermelha, com a foice e o martelo, foi baixada do Kremlin.
Parecia impossível que o Ocidente, que observava o terror soviético de longe, pudesse algum dia ensaiar os mesmos gestos de silenciar, sufocar divergências e usar o Judiciário como extensão do poder político. Parecia que o século das tiranias havia sido encerrado com o colapso daquele império, e muitos acreditaram que democracias maduras estavam imunizadas contra a tentação do arbítrio. Mas a história é astuta. Ela não se repete de forma literal. Ela apenas aguarda, paciente, para reaparecer com outra máscara e novos figurinos.
Nesta mesma semana em que o mundo recorda o colapso soviético, o Brasil assistiu a uma cena que seria impensável em qualquer país sério e minimamente livre. Em uma sessão transmitida ao vivo, na mais alta corte do país, um advogado foi impedido de exercer a palavra. O defensor de Filipe Martins, Jeffrey Chiquini, teve sua fala interrompida pelo presidente da sessão. E, numa ironia quase literária, coube justamente a Flávio Dino, ministro que já se declarou comunista, silenciá-lo no instante em que buscava apresentar uma questão de ordem constitucional.
Não houve violência física. Não houve tumulto. Houve algo mais grave e mais simbólico. Um policial foi convocado por um ministro comunista e colocado ao lado de um cidadão cujo único instrumento era a palavra. A imagem dispensa explicações. A aproximação silenciosa do policial, sua postura de guarda, o gesto de interromper o advogado, o recuo forçado. Tudo ali compõe a coreografia do poder. Quem define o limite da palavra naquele ambiente não é a lei. É o ministro.
E é precisamente esse detalhe visual que revela o tamanho da ruptura que estamos testemunhando. Um homem de uniforme permanecendo imóvel ao lado do púlpito, aguardando que a voz cesse, diz mais sobre o estado das instituições do que qualquer voto, discurso ou editorial. É a imagem do poder que se irrita com a contestação. Em países livres, o Estado escuta primeiro e decide depois. Em países autoritários, o Estado decide primeiro e já não quer escutar. A fronteira entre essas duas realidades é mais estreita do que gostaríamos de admitir. O Brasil já viu inúmeras cenas de tensões institucionais nos últimos anos, mas poucas têm o simbolismo desta. Não se trata apenas de uma divergência processual ou de um debate acalorado.
Trata-se de impedir alguém de falar. E quando o Estado impede alguém de falar, sobretudo um advogado no exercício de sua função, todos os alarmes civilizacionais deveriam soar. Não existe democracia sem segurança jurídica. Não existe Justiça sem ampla defesa. Não existe Estado de Direito quando o contraditório é tratado como inconveniência a ser contida coercitivamente.
A liberdade morre devagar, e começa sempre com a mesma cena: alguém tentando falar — e o Estado decidindo que não.
Neste ponto, a história pesa. O que vimos não é novidade na experiência humana. Em regimes autoritários, especialmente no universo soviético, a legalidade era mantida apenas para funcionar como cenografia. O fundamento real estava na intimidação. Juízes, promotores, advogados: todos sabiam seu lugar. Não era o mérito do argumento que definia o resultado, era o interesse do Estado. O processo virava teatro. A sentença era conhecida antes que o acusado falasse. E o contraditório era tolerado apenas até o momento em que se tornasse inconveniente.
A coincidência é incômoda. Trinta e quatro anos depois da queda da União Soviética, vemos na República brasileira sinais de que a tentação do poder ilimitado continua viva. Não o poder militar, não o partido único, mas a lógica sutil do “você cala agora, porque eu decidi”. O tribunal, que deveria dar exemplo, termina por dar aviso. A toga, que deveria ser a última barreira contra o arbítrio, tornou-se o instrumento do arbítrio. A polícia, que deveria proteger a lei, foi convocada para proteger o desejo de um ministro.
Há quem queira tratar o episódio como mais um capítulo do tumulto político brasileiro. Mas isso seria uma forma de cegueira voluntária. Democracias não colapsam de uma vez. Democracias se desgastam por erosão. Morrem por conveniência. O perigo não surge com tanques na rua, surge com normalizações sutis: “é só um advogado”, “é só um caso”, “é só uma exceção”.
A queda da União Soviética não ensina apenas sobre a falência de um sistema econômico. Ensina sobre a fragilidade das sociedades que deixam de reconhecer os sinais do autoritarismo. Regimes totalitários não se consolidam de um dia para o outro. Eles começam a vencer quando o cidadão acredita que precisa de permissão para falar.
A coincidência é incômoda. Trinta e quatro anos depois da queda da União Soviética, vemos na República brasileira sinais de que a tentação do poder ilimitado continua viva. Não o poder militar, não o partido único, mas a lógica sutil do “você cala agora, porque eu decidi”. O tribunal, que deveria dar exemplo, termina por dar aviso. A toga, que deveria ser a última barreira contra o arbítrio, tornou-se o instrumento do arbítrio. A polícia, que deveria proteger a lei, foi convocada para proteger o desejo de um ministro.
Há quem queira tratar o episódio como mais um capítulo do tumulto político brasileiro. Mas isso seria uma forma de cegueira voluntária. Democracias não colapsam de uma vez. Democracias se desgastam por erosão. Morrem por conveniência. O perigo não surge com tanques na rua, surge com normalizações sutis: “é só um advogado”, “é só um caso”, “é só uma exceção”.
A queda da União Soviética não ensina apenas sobre a falência de um sistema econômico. Ensina sobre a fragilidade das sociedades que deixam de reconhecer os sinais do autoritarismo. Regimes totalitários não se consolidam de um dia para o outro. Eles começam a vencer quando o cidadão acredita que precisa de permissão para falar.
Por isso, o episódio desta semana é tão grave. Surpreendentemente, não recebeu a cobertura que merecia e devia. Não porque vivemos uma ditadura formal, mas porque existe no Brasil algo mais insidioso: a judicialização do poder. Um regime em que quem se opõe ao tribunal, e somente ao tribunal, é tratado como ameaça. Um sistema em que ministros se comportam como proprietários da democracia, e não como seus guardiões.
Um ambiente em que o cidadão teme falar e advogados são interrompidos sob o pretexto de proteger a ordem.
E é por isso que, nesta semana que marca o fim de um dos regimes mais autoritários do século passado, devemos tratar esta cena no Supremo Tribunal Federal com a gravidade que ela exige. A democracia só sobrevive quando reconhece o perigo antes que ele se consolide. A história não avisa duas vezes. Ela apenas repete. E o preço da repetição é sempre mais alto do que o da vigilância.
Lembrar o 8 de dezembro de 1991 não é nostalgia. É higiene intelectual. O episódio desta semana não é o retorno de uma ditadura formal, mas já é o retrato do autoritarismo infiltrado em gestos burocráticos e justificativas técnicas. A imagem do policial ao lado do púlpito será lembrada para sempre na história do Brasil. Não pelo gesto físico, mas pelo gesto moral. Foi um marco.
O instante em que o Judiciário revelou que, para ele, a palavra pode ser um incômodo. O instante em que a hierarquia do poder ficou visível: acima de tudo, não está a lei, está o ministro. E, se necessário, está a força. Se a história serve para algo, é para impedir que a repetição nos surpreenda.
A liberdade morre devagar, e começa sempre com a mesma cena: alguém tentando falar — e o Estado decidindo que não
Ana Paula Henkel - Revista Oeste