sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

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Mais um ‘show trial’ alexandrino, por Flávio Gordon

Um advogado impedido de falar, um relator que ou mente ou decide sem ler, um presidente que reage a argumentos com cassetete instituciona


Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock/Rosinei Coutinho/STF


O que se viu nesta segunda-feira, 9 de dezembro de 2025, na continuidade do julgamento da Ação Penal 2.693 — a peça acusatória que pretende enquadrar Jair Bolsonaro e exintegrantes de seu governo como autores de uma suposta “tentativa de golpe” — foi mais um capítulo na lenta degradação das formas legais no Brasil. Um episódio que, pela coreografia e pelo propósito, lembra cada vez mais os show trials (“julgamentosespetáculo”) da velha Rússia soviética. 

O advogado de Filipe G. Martins, Jeffrey Chiquini, dirigiu-se à tribuna para fazer uma questão de ordem: pedia que o relator Alexandre de Moraes reconsiderasse a decisão arbitrária que havia proibido a defesa de exibir dois slides em sua sustentação oral. Um dos slides reproduzia uma tese jurídica antes defendida por Cristiano Zanin — hoje juiz da causa, então advogado de Lula no caso Zelotes — contra o uso de minutas apócrifas pela acusação. A defesa apenas pretendia lembrar ao tribunal a doutrina que o próprio magistrado já consagrara. 


Filipe Martins e seu advogado Jeffrey Chiquini - Foto: Rosinei Coutinho/STF

A resposta de Moraes foi a de sempre: seca, ríspida, autoritária, com aquele sotaque típico de quem confunde função jurisdicional com big stick (“cassetete institucional”). “Impertinente”, sentenciou. “Se fossem importantes, estariam nos autos.” O detalhe, evidentemente, é que estavam. Nas páginas 268 a 271 das alegações finais. Chiquini tentou demonstrar o óbvio — ou seja, a verdade documental —. mas foi prontamente silenciado pelo presidente do julgamento, o orgulhoso comunista Flávio Dino, que, cumprindo seu papel de bedel do regime, ordenou à sua polícia política que arrancasse o advogado da tribuna. 

Eis o retrato: um advogado impedido de falar, um relator que ou mente ou decide sem ler, um presidente que reage a argumentos com cassetete institucional. Quem observa a cena e ainda acredita estar diante de um tribunal, e não de um aparato de exceção, precisa urgentemente reler os capítulos mais sombrios da história do Direito. 



Ministro Flávio Dino preside o julgamento da Ação Penal 2.693 - Foto: Rosinei Coutinho/STF 


Sim, a analogia é inevitável. Trata-se da velha tradição dos julgamentos-espetáculo do bolchevismo, cuja finalidade nunca foi apurar a verdade, mas demonstrar a força do Estado contra os inimigos políticos escolhidos pelo Partido. No início do século 20, ainda sob Lenin, estabeleceu-se o princípio de que a legalidade revolucionária não devia fidelidade à lei, mas à revolução. O bolchevismo inaugurou um regime em que o juiz não julgava, mas executava — isto é, cumpria o desejo político do Partido sob a máscara da técnica jurídica. 

O julgamento dos Socialistas Revolucionários, em 1922, foi paradigmático. Não havia ali investigação, contraditório ou provas: havia um roteiro. Réus previamente escolhidos, narrativas previamente escritas, e a plateia convocada para testemunhar o triunfo do Estado sobre seus “inimigos”. O processo deixou de ser um meio para apurar fatos e tornou-se instrumento pedagógico — uma aula pública de submissão.

Stalin levou essa lógica à sua forma mais pura. Shakhty (1928), MetroVickers (1933) e os grandes julgamentos de Moscou (1936-38) consolidaram a gramática definitiva do show trial: acusação fabricada, confissão obtida por coação e juiz convertido em executor de sentenças pré-escritas. Nesses julgamentos, como observa Robert Conquest, o processo penal virou teatro — mas um teatro letal, em que os atores saíam do palco direto para o porão da Lubianka.


A toga se converteu em instrumento de perseguição política e terror simbólico.  


Não é preciso grande esforço intelectual para perceber semelhanças estruturais com o que vemos hoje no Brasil. Há diferenças de grau, sem dúvida — mas não de natureza. Quando um tribunal censura provas, impede a defesa de falar, distorce o que está nos autos e cria, antes do julgamento, uma narrativa oficial que todos devem acatar, não estamos diante de “erros processuais”. Estamos testemunhando a substituição do processo penal por um instrumento narrativo — exatamente o que faziam os tribunais revolucionários soviéticos. 

O mecanismo brasileiro opera com uma lógica semelhante: fabricar a percepção pública de que há um complô antidemocrático, atribuí-lo a opositores do regime, censurar discordâncias e produzir decisões judiciais que reforcem a narrativa prévia. É uma dinâmica de retroalimentação: a narrativa justifica a decisão, e a decisão legitima a narrativa. O direito deixa de ser um limite ao poder e se converte em sua extensão. 

Vê-se, portanto, que a essência dos show trials não está na violência explícita, mas no controle absoluto do processo: quem acusa, quem julga, o que pode ser dito, o que deve ser calado. A defesa existe apenas para ser humilhada. A verdade é irrelevante. E o veredito, conhecido de antemão. 

É precisamente essa lógica que hoje se insinua nos tribunais brasileiros. Quando o relator de um processo político impede a defesa de apresentar argumentos doutrinários; quando o presidente da Corte expulsa um advogado por apontar fatos constantes dos autos; quando decisões são tomadas sem leitura prévia das peças defensivas; quando o réu é tratado não como cidadão, mas como inimigo nacional — então estamos diante de algo que já não pertence ao Estado de Direito, mas à tradição dos tribunais de exceção. 

O Brasil ingressou numa era em que, pouco a pouco, e com aplauso de boa parte das nossas elites, a toga se converteu em instrumento de perseguição política e terror simbólico. E, como mostram as lições da história soviética, nada é mais perigoso do que um Judiciário que abandona o Direito para dele se servir em vista de um projeto de poder. 


A toga se converteu em instrumento de perseguição política e terror simbólico - Foto: Luiz Silveira/STF


Flávio Gortdon -0 Revista Oeste

Ana Paula Henkel e 'A foto do regime'

Parecia impossível que o Ocidente, que observava o terror soviético de longe, pudesse algum dia ensaiar os mesmos gestos de silenciar, sufocar divergências e usar o Judiciário como extensão do poder político


Flávio Dino pede ajuda de policial para calar o advogado de Filipe Martins. Na imagem, o momento em que policial orienta o advogado Jeffre Chiquini a voltar para o seu lugar - Foto: Reprodução/Sérgio Lima/Poder36


H á datas que deveriam funcionar como vacina moral. Nesta semana, 8 de dezembro, completam-se mais de três décadas da dissolução da União Soviética, o desfecho de um regime que transformou repressão em rotina, censura em virtude e o Estado em juiz das próprias vontades políticas. 

Foi em 1991, numa casa de campo na floresta nos arredores de Minsk, que três homens se sentaram diante de uma mesa improvisada e assinaram o atestado de óbito de um império. 

Rússia, Ucrânia e Bielorrússia declararam no Acordo de Belavezha que a URSS deixaria de existir. Dezesseis dias depois, em 26 de dezembro, o Soviete Supremo formalizou o fim e a bandeira vermelha, com a foice e o martelo, foi baixada do Kremlin. 


Assinatura do Acordo para eliminar a URSS e estabelecer a Comunidade de Estados Independentes. O presidente ucraniano Leonid Kravchuk (segundo a partir da esquerda sentado), o presidente do Conselho Supremo da República da Bielorrússia Stanislav Shushkevich (terceiro a partir da esquerda sentado) e o presidente russo Boris Yeltsin (segundo a partir da direita sentado) durante a cerimónia de assinatura para eliminar a URSS e estabelecer a Comunidade de Estados Independentes. Casa do Governo Viskuly no Parque Nacional da Bielo-Rússia “Floresta Belovezhskaya” (8/12/1991) - Foto: Wikimedia Commons

Parecia impossível que o Ocidente, que observava o terror soviético de longe, pudesse algum dia ensaiar os mesmos gestos de silenciar, sufocar divergências e usar o Judiciário como extensão do poder político. Parecia que o século das tiranias havia sido encerrado com o colapso daquele império, e muitos acreditaram que democracias maduras estavam imunizadas contra a tentação do arbítrio. Mas a história é astuta. Ela não se repete de forma literal. Ela apenas aguarda, paciente, para reaparecer com outra máscara e novos figurinos. 

Nesta mesma semana em que o mundo recorda o colapso soviético, o Brasil assistiu a uma cena que seria impensável em qualquer país sério e minimamente livre. Em uma sessão transmitida ao vivo, na mais alta corte do país, um advogado foi impedido de exercer a palavra. O defensor de Filipe Martins, Jeffrey Chiquini, teve sua fala interrompida pelo presidente da sessão. E, numa ironia quase literária, coube justamente a Flávio Dino, ministro que já se declarou comunista, silenciá-lo no instante em que buscava apresentar uma questão de ordem constitucional.

Não houve violência física. Não houve tumulto. Houve algo mais grave e mais simbólico. Um policial foi convocado por um ministro comunista e colocado ao lado de um cidadão cujo único instrumento era a palavra. A imagem dispensa explicações. A aproximação silenciosa do policial, sua postura de guarda, o gesto de interromper o advogado, o recuo forçado. Tudo ali compõe a coreografia do poder. Quem define o limite da palavra naquele ambiente não é a lei. É o ministro.

E é precisamente esse detalhe visual que revela o tamanho da ruptura que estamos testemunhando. Um homem de uniforme permanecendo imóvel ao lado do púlpito, aguardando que a voz cesse, diz mais sobre o estado das instituições do que qualquer voto, discurso ou editorial. É a imagem do poder que se irrita com a contestação. Em países livres, o Estado escuta primeiro e decide depois. Em países autoritários, o Estado decide primeiro e já não quer escutar. A fronteira entre essas duas realidades é mais estreita do que gostaríamos de admitir. O Brasil já viu inúmeras cenas de tensões institucionais nos últimos anos, mas poucas têm o simbolismo desta. Não se trata apenas de uma divergência processual ou de um debate acalorado. 

Trata-se de impedir alguém de falar. E quando o Estado impede alguém de falar, sobretudo um advogado no exercício de sua função, todos os alarmes civilizacionais deveriam soar. Não existe democracia sem segurança jurídica. Não existe Justiça sem ampla defesa. Não existe Estado de Direito quando o contraditório é tratado como inconveniência a ser contida coercitivamente.  


A liberdade morre devagar, e começa sempre com a mesma cena: alguém tentando falar — e o Estado decidindo que não. 


Neste ponto, a história pesa. O que vimos não é novidade na experiência humana. Em regimes autoritários, especialmente no universo soviético, a legalidade era mantida apenas para funcionar como cenografia. O fundamento real estava na intimidação. Juízes, promotores, advogados: todos sabiam seu lugar. Não era o mérito do argumento que definia o resultado, era o interesse do Estado. O processo virava teatro. A sentença era conhecida antes que o acusado falasse. E o contraditório era tolerado apenas até o momento em que se tornasse inconveniente.


Stanisław Jasiukowicz, membro da Delegação do Governo Polaco no Exílio para a Polónia, defendendo-se durante o julgamento encenado em Moscou, União Soviética (21/6/1945) - Foto: Domínio Público 

A coincidência é incômoda. Trinta e quatro anos depois da queda da União Soviética, vemos na República brasileira sinais de que a tentação do poder ilimitado continua viva. Não o poder militar, não o partido único, mas a lógica sutil do “você cala agora, porque eu decidi”. O tribunal, que deveria dar exemplo, termina por dar aviso. A toga, que deveria ser a última barreira contra o arbítrio, tornou-se o instrumento do arbítrio. A polícia, que deveria proteger a lei, foi convocada para proteger o desejo de um ministro. 

Há quem queira tratar o episódio como mais um capítulo do tumulto político brasileiro. Mas isso seria uma forma de cegueira voluntária. Democracias não colapsam de uma vez. Democracias se desgastam por erosão. Morrem por conveniência. O perigo não surge com tanques na rua, surge com normalizações sutis: “é só um advogado”, “é só um caso”, “é só uma exceção”. 

A queda da União Soviética não ensina apenas sobre a falência de um sistema econômico. Ensina sobre a fragilidade das sociedades que deixam de reconhecer os sinais do autoritarismo. Regimes totalitários não se consolidam de um dia para o outro. Eles começam a vencer quando o cidadão acredita que precisa de permissão para falar.


Stanisław Jasiukowicz, membro da Delegação do Governo Polaco no Exílio para a Polónia, defendendo-se durante o julgamento encenado em Moscou, União Soviética (21/6/1945) - Foto: Domínio Público

A coincidência é incômoda. Trinta e quatro anos depois da queda da União Soviética, vemos na República brasileira sinais de que a tentação do poder ilimitado continua viva. Não o poder militar, não o partido único, mas a lógica sutil do “você cala agora, porque eu decidi”. O tribunal, que deveria dar exemplo, termina por dar aviso. A toga, que deveria ser a última barreira contra o arbítrio, tornou-se o instrumento do arbítrio. A polícia, que deveria proteger a lei, foi convocada para proteger o desejo de um ministro. 

Há quem queira tratar o episódio como mais um capítulo do tumulto político brasileiro. Mas isso seria uma forma de cegueira voluntária. Democracias não colapsam de uma vez. Democracias se desgastam por erosão. Morrem por conveniência. O perigo não surge com tanques na rua, surge com normalizações sutis: “é só um advogado”, “é só um caso”, “é só uma exceção”. 

A queda da União Soviética não ensina apenas sobre a falência de um sistema econômico. Ensina sobre a fragilidade das sociedades que deixam de reconhecer os sinais do autoritarismo. Regimes totalitários não se consolidam de um dia para o outro. Eles começam a vencer quando o cidadão acredita que precisa de permissão para falar.


A noite dos assassinatos soviéticos de 13 de janeiro de 1991 em Vilnius, Lituânia. Um cidadão lituano desarmado enfrenta um tanque soviético -  Foto: Domínio Público 


Por isso, o episódio desta semana é tão grave. Surpreendentemente, não recebeu a cobertura que merecia e devia. Não porque vivemos uma ditadura formal, mas porque existe no Brasil algo mais insidioso: a judicialização do poder. Um regime em que quem se opõe ao tribunal, e somente ao tribunal, é tratado como ameaça. Um sistema em que ministros se comportam como proprietários da democracia, e não como seus guardiões. 

Um ambiente em que o cidadão teme falar e advogados são interrompidos sob o pretexto de proteger a ordem.

E é por isso que, nesta semana que marca o fim de um dos regimes mais autoritários do século passado, devemos tratar esta cena no Supremo Tribunal Federal com a gravidade que ela exige. A democracia só sobrevive quando reconhece o perigo antes que ele se consolide. A história não avisa duas vezes. Ela apenas repete. E o preço da repetição é sempre mais alto do que o da vigilância.


Réus durante o julgamento de Shakhty, o primeiro julgamento-espetáculo soviético importante do Partido Socialista Revolucionário em 1922. Cinquenta e três engenheiros e administradores da cidade de Shakhty, no norte do Cáucaso, foram presos em 1928 após serem acusados de conspirar para sabotar a economia soviética com os antigos proprietários das minas de carvão. Salão das Colunas da Casa dos Sindicatos em Moscou, União Soviética (entre 1928 a 1937) - Foto: Wikimedia Commons

Lembrar o 8 de dezembro de 1991 não é nostalgia. É higiene intelectual. O episódio desta semana não é o retorno de uma ditadura formal, mas já é o retrato do autoritarismo infiltrado em gestos burocráticos e justificativas técnicas. A imagem do policial ao lado do púlpito será lembrada para sempre na história do Brasil. Não pelo gesto físico, mas pelo gesto moral. Foi um marco. 

O instante em que o Judiciário revelou que, para ele, a palavra pode ser um incômodo. O instante em que a hierarquia do poder ficou visível: acima de tudo, não está a lei, está o ministro. E, se necessário, está a força. Se a história serve para algo, é para impedir que a repetição nos surpreenda. 

A liberdade morre devagar, e começa sempre com a mesma cena: alguém tentando falar — e o Estado decidindo que não

Ana Paula Henkel - Revista Oeste