Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, Carmen Lúcia, Flávio Dino e Dias Toffoli | Foto: Montagem revista Oeste/Flickr STF
N ascido em 30 de dezembro de 1955, prestes a virar setentão, Gilmar Ferreira Mendes já estaria trocando a toga pelo pijama se a PEC da Bengala não tivesse esticado por mais cinco anos a data da aposentadoria compulsória. Sorte dele, azar do Brasil. No duplo papel de decano do Supremo Tribunal Federal e patriarca do consórcio que controla a ditadura do Judiciário, esse mato-grossense de Diamantino leva a vida que todo mandão rabugento pede a Deus ou encomenda ao diabo.
Feliz com o empregão que ganhou no começo do século do presidente Fernando Henrique Cardoso, Gilmar quer desfrutar com gana e gula o tempo que resta. É o que informam as duas mais recentes piruetas empreendidas pelo inventor do pranto convulsivo sem lágrima. A primeira encerrou o casamento com a advogada Guiomar Feitosa, que chama de Gil o ex-marido que a chama de Guio. Sem ressentimentos, jurou o casal que habitou a mesma casa por 18 anos.
“Cansamos de ser casados, mas não cansamos e jamais cansaremos de ser amigos”, disse Guiomar.
“Nada muda em uma relação de muita amizade e respeito”. Gilmar ressaltou que a ligação afetiva começou quando ainda cursavam a faculdade de Direito. O carinho é tanto que, consumado o afastamento, eles viajaram juntos para a Europa. Pela primeira vez na história, uma lua de mel ocorreu depois da separação.
Nesta primeira semana de dezembro, retemperado pelo passeio, o ministro resolveu estuprar mais uma vez a Constituição — agora para abortar quaisquer tentativas de tomar-lhe o emprego. Em vigor desde 1950, a Lei do Impeachment estabelece que mesmo um cidadão comum pode propor o impeachment de ministros do STF, e que compete privativamente ao Senado processá-los e julgá-los por crime de responsabilidade. Em decisão monocrática, Gilmar decidiu que, agora, só o procurador-geral da República poderá propor esse tipo de impeachment. O Senado e o povo que se queixem ao bispo.
A liminar subscrita por Gilmar deforma a lei, rasga mais páginas da Constituição e, ao confiscar atribuições do Senado, resulta num golpe institucional preventivo. A esperteza decorre da contemplação da paisagem eleitoral. Sobram evidências de que as eleições de 2026 devem provocar dramáticas mudanças no Senado. Com duas vagas em disputa por Estado, a oposição ao governo Lula tem fortes chances de eleger a maioria. Antes que isso aconteça, Gilmar tenta evitar que os integrantes do STF sejam submetidos ao controle constitucional de uma instituição hostil. A menos que o Legislativo tenha optado pela rendição sem luta, desta vez não será tão fácil desfigurar mais ainda a Constituição com outro pecado capital.
O primeiro deles foi consumado em 2019, quando o ministro Dias Toffoli, então presidente do STF, e o caçula da corte, Alexandre de Moraes, pariram em parceria o Inquérito 4.781. (Os parteiros o batizaram de Inquérito das Fake News. Pode chamá-lo de inquérito do fim do mundo que ele atende). De lá para cá, o Brasil vem contemplando a construção contínua e consciente de um desarranjo constitucional e de um monumento à insegurança jurídica. O inquérito foi aberto de ofício por Toffoli, que usou o Regimento Interno do tribunal para manter fora do caso o Ministério Público. O truque acelerou a desmoralização do sistema acusatório brasileiro e inaugurou a sequência de rasgões que desfiguraram a Constituição de 1988.
Ao violar o princípio da separação dos poderes, previsto no artigo 2º da Constituição, esse pecado inaugural desencadeou a série de ataques à Constituição e pancadas nos códigos legais. A pretexto de combater ofensivas antidemocráticas imaginárias, o ministro Alexandre de Moraes passou a desempenhar simultaneamente os papéis de vítima, investigador, delegado, acusador e julgador de tudo e de todos. Com isso, o STF violentou os incisos LIV e LV, que estabelecem o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa. E cometeu o segundo pecado capital ao mandar às favas o inciso LXXVIII do artigo 5º, que fixa prazos razoáveis para a duração dos procedimentos judiciais.
A marcha da insensatez tornou-se delirante quando o inquérito desdobrou-se num punhado de filhotes, todos sob a guarda do relator Moraes. “Minha vara criminal tem mais de dois mil casos”, desandou o ministro onipresente num surto de autolouvação. É compreensível que nunca cheguem ao fim. Os alvos dos inquéritos não sabem direito o que fizeram de errado. E os advogados ignoram os delitos atribuídos aos clientes. Até agora, nenhum código legal inclui abstrações como difusão de fake news, desinformação, negacionismo ou discurso de ódio. Como tais crimes não aparecem em lei alguma, incontáveis brasileiros têm sofrido punições ditadas exclusivamente pela cabeça de um juiz. Moraes, naturalmente.
Ao Inquérito das Fake News sobrevieram o Inquérito 4.828, sobre “atos antidemocráticos”, e o 4.874, reservado a “milícias digitais”. Ambos geraram tantas ramificações que o STF acabou transformado em polícia política e censor de redes sociais. Desapareceram a delimitação objetiva de condutas, prazos, denúncias ou conclusões. A corte deixou de respeitar sua própria Súmula Vinculante 14, que exige de todos os tribunais do país que garantam aos representantes das partes acesso total aos autos de processos e inquéritos.
Tais exigências foram trituradas pela máquina que aprisiona sem motivos claros cidadãos que são permanentemente investigados sabe-se lá por quê. Foi assim com Filipe Martins, preso preventivamente por seis meses — sem denúncia. Ou Jair Bolsonaro, cuja prisão preventiva foi atribuída a um inquérito que, sabe-se agora, não o incluía entre os investigados. O terceiro pecado capital foi a violação sistemática da liberdade de expressão e de imprensa, garantidas pelo artigo 5 e, especialmente, pelo artigo 220, que proíbe toda e qualquer forma de censura. Primeira vítima do início da escuridão, a revista Crusoé livrou-se dos censores togados graças à reação de órgãos de imprensa, entidades e instituições que ainda não haviam sucumbido à estatização ou ao medo.
Numa genuína brasileirice, a guerra contra as fake news começara com uma notícia perigosamente verdadeira: era Dias Toffoli a figura conhecida nos porões da Odebrecht como Amigo do Amigo do Meu Pai. Logo depois, a perseguição ao jornalismo independente recrudesceu — sem disfarces. Os poucos que sempre resistiram se habituaram ao combate solitário. É o caso dos defensores da verdade reunidos nos espaços da Revista Oeste.
Sabe-se que a mulher de Toffoli foi sócia de um dos advogados dos envolvidos na gigantesca safadeza.
O quarto pecado capital foi a violação do artigo 53 da Constituição, segundo o qual parlamentares “não podem ser punidos por quaisquer opiniões, palavras ou votos”. Duríssimos castigos aplicados pela cúpula do Judiciário comunicaram que o texto constitucional fora revogado por tempo indeterminado. Por ter cometido um delito que poderia ser no máximo enquadrado nos crimes contra a honra, o deputado federal Daniel Silveira, por exemplo, foi condenado a quase nove anos de cadeia. O medo do baú de represálias à disposição dos ministros calou outros parlamentares — e, por consequência, reduziu ao silêncio os brasileiros que os elegeram.
O quinto pecado capital foi escancarado pela revogação oficiosa do artigo 55 da Constituição. Ali está escrito que a prisão em flagrante de parlamentares deve ser submetida ao crivo do Legislativo, que também tem a última palavra sobre a manutenção ou perda do mandato. Esse artigo respira por aparelhos, mostram os casos de Carla Zambelli, Alexandre Ramagem e outros parlamentares tratados pelo STF com severidade muito maior que a reservada a corruptos de fina linhagem e bandidos de alta periculosidade. A cada hesitação do Legislativo corresponde um avanço insolente do Supremo. Aos olhos dos reizinhos togados, os poderes já foram iguais, mas hoje o STF é mais igual que os outros.
Consequência do anterior, o sexto pecado capital é a soma da suprema soberba, da infinita arrogância que sustenta a falácia do Poder Moderador onipotente, onisciente e onipresente. A certeza de que o STF fundou uma admirável democracia à brasileira e vem recivilizando a nação fundamenta o sonho dos discípulos de Gilmar Mendes: logo vão mandar em tudo, mandar em todos e mandar para a cadeia os inimigos da pátria. Nenhuma Constituição exibe tanta sabedoria quanto os cérebros dos seus antigos guardiães. É por isso que Gilmar faz o que anda fazendo.
É por isso que Dias Toffoli faz o que acabou de fazer: impôs “sigilo máximo” ao caso Vorcaro/Banco Master. Tudo o que se refere à bandalheira da vez agora tem de ser entregue ao Amigo do Amigo do Meu Pai. Superior até mesmo ao segredo de justiça, o sigilo máximo proíbe o acesso a quaisquer informações, aí incluídas decisões de ministros ou identificação dos advogados em ação.
Para quem vê as coisas como as coisas são, trata-se de uma manobra suspeitíssima. Sabe-se que a mulher de Toffoli foi sócia de um dos advogados dos envolvidos na gigantesca safadeza. Sabe-se que o ministro participou, em Londres, de um evento patrocinado pelo Banco Master. Sabe-se que outros doutores togados participaram de um jantar em Nova Iorque igualmente custeado pelo banco. Em vez de declarar-se sob suspeição, Toffoli sacou do coldre o sigilo máximo. A autoconfiança excessiva costuma preceder tombos de bom tamanho.
O sétimo pecado capital pode estar em gestação. Aparentemente, o Supremo pretende tornar-se suficientemente forte para sufocar no nascedouro manifestações de inconformismo de um Legislativo que sairá bem mais musculoso das urnas de 2026. Democracias genuínas só existem quando os três Poderes aceitam ser contidos. Se algum deles decide agir sem limites, poderá estar cometendo o pecado derradeiro.
Augusto Nunes e André Marsiglia, Revista Oeste