A uva francesa Malbec é hoje quase um patrimônio argentino. Sua produção em áreas mais altas e frias, com inquestionáveis ganhos no sabor, é uma das principais inovações da indústria vinícola mundial das últimas décadas. Os melhores Malbec se situam hoje entre os grandes vinhos tintos do planeta.
O responsável por essa verdadeira revolução na vitivinicultura da Argentina é o empresário Nicolás Catena, 68 anos, que praticamente inventou o vinho Malbec contemporâneo. Seu vinhedo Adrianna, a 1500 metros de altitude, com microclima e solo privilegiados, é uma obra prima da vinicultura mundial e é considerado pela crítica especializada um dos melhores vinhedos das Américas.
“O futuro do vinho argentino passa pela descoberta de novos terroirs”, disse Catena em entrevista para a revista ISTOÉ. “Ainda estamos começando essa busca, enquanto a França faz isso há séculos”. O mais reverenciado dos produtores argentinos esteve no Brasil, na semana passada, para lançar uma nova coleção de rótulos de seu vinho Catena Zapata Malbec Argentino.
Costuma-se dizer que há uma vitivinicultura na Argentina antes de Catena e depois de Catena. O que isso quer dizer?
A minha vinícola foi iniciada pelo meu avô Nicolás, imigrante italiano que plantou sua primeira vinha na Argentina em 1902. Depois meu pai continuou o trabalho e no começo dos anos 60 foi minha vez de dirigir a empresa familiar. E a maneira de cultivar o vinhedo e de fazer o vinho seguia a antiga tecnologia italiana, adotada em Mendoza. Na minha gestão começamos a fazer o vinho de outra forma.
De que forma?
O mais curioso da antiga tecnologia era que eles guardavam o vinho em tonéis grandes de roble velho com mais ou menos cinco mil ou dez mil litros onde a bebida envelhecia durante três ou quatro anos. Mas nesse processo tanto o vinho tinto como o branco se oxidavam e adquiriam um sabor típico de um Jerez ou de um Porto. O vinho ficava sem personalidade. A grande arte de fazer um vinho era encontrar uma fórmula para guardá-lo e oxidá-lo o menos possível, colocando em barris de carvalho menores e bem cheios. Quando o vinho não oxida aparece o gosto da fruta do lugar, com diferenças entre um microclima e outro, entre um solo e outro.
Como era esse método?
Estudei economia e matemática e no começo dos anos 1980 e fui como professor convidado para Berkeley, na Califórnia. Era empresário e estudioso de economia. Então fui conhecer o Napa Valley e aí descobri que todas as vinícolas estavam tentando fazer um produto que competisse com o melhor da França. Já havia o líder dessa rebelião americana, Robert Mondavi, que trouxe para os Estados Unidos o envelhecimento em barris de carvalho franceses.
Essa descoberta mudou sua vida?
Mudou minha vida e de todos os argentinos. A partir daí fiquei entusiasmado e iniciei imediatamente um projeto para fazer o vinho na Argentina mudando totalmente a tecnologia de cultivo da videira e da elaboração do vinho, tentando fazer o mesmo que faziam os californianos com o varietais tinto Cabernet Sauvignon e branco Chardonnay.
E a uva Malbec, como entra nessa história?
O mais importante para mim é a paixão do meu pai pelo sabor do Malbec. Meu pai ia todos os anos à Europa, um mês pelo menos, para provar vinhos europeus. E quando voltava dizia: para mim o melhor é o Malbec. Eu o havia escutado e conhecia sua opinião. Quando vim da Califórnia comecei a usar as novas tecnologias com o Cabernet Sauvignon e o Chardonnay. Minha primeira colheita, em 1990, foi excelente. Mas essa vontade do meu pai, que queria um Malbec, ficou na minha cabeça. Então, dois anos depois, faço um Malbec seguindo os novos princípios. Nós tínhamos muitos vinhedos antigos e bons que vinham desde o tempo do meu avô.
Foi difícil abrir o mercado para o Malbec?
Percebi que ninguém conhecia o Malbec. E o primeiro problema que eu tinha era o preço. Eu vendia o Cabernet Sauvignon no varejo ao preço de 15 dólares a garrafa. A que preço colocaria o Malbec? Fiz um painel de degustadores selecionados por nosso importador em Boston e apresentamos o Cabernet Sauvignon e o Malbec. Questionados quanto pagariam por cada um deles, disseram que pagariam até 40% mais pelo Malbec. Pus então a garrafa de Malbec a US$ 20 e o Cabernet Sauvignon ficou a US$ 15. E aí começa a história do Malbec no mundo, como um tinto melhor que o Cabernet Sauvignon.
Mas no começo não havia muita ciência?
Ainda não, eu havia começado com um Malbec sem muita seleção, fazíamos a colheita, colocávamos o vinho em barris para depois engarrafá-lo e vendê-lo. Mas rápido nos demos conta que o Malbec produzido com uvas plantadas em áreas mais altas, acima de mil metros, era diferente. Começamos a elaborar separadamente esse vinho de vinhedos um pouco mais altos e o chamamos de Catena Alta. E creio que, neste momento, o Malbec passa a ser um grande varietal, uma grande cepa. Quando me dei conta disso começo a plantar a 1,5 mil metros. E aí temos um novo vinho, com sabor ainda melhor.
É o vinhedo Adrianna?
Sim. Foi como uma aventura porque não sabíamos bem o que iria passar nesta altura. Descobrimos que quando o vinhedo sobe passam duas coisas importantes. A primeira é que a temperatura baixa um grau a cada cem metros, o que é muito. E a segunda é que a radiação ultravioleta aumenta rapidamente e isso produz um efeito significativo na composição química do suco de uva. Isso explica porque o vinho de mais altura, sobretudo da variedade Malbec, tem um sabor muito diferente. A primeira colheita no Adrianna foi em 1996. Mas as primeiras colheitas de alta categoria foram as de 2005 e 2006.
Foi a descoberta de um outro terroir. O que é o terroir?
Cada lugar na terra tem um microclima e um tipo de solo. São algumas características singulares do terreno. Essas condições específicas definem o terroir.
Qual é a importância na ciência na produção de um grande vinho?
A ciência nos ajuda a identificar os melhores lugares. Até agora o melhor vinhedo onde a Catena produz é Adrianna, mas continuamos procurando novos terrenos. Nós temos o Catena Institute of Wine, que elabora estudos regulares sobre os solos e os microclimas. Chegamos a analisar 300 lugares diferentes no mesmo vinhedo e vamos tirando conclusões.
Fala-se que o Adrianna é melhor vinhedo das Américas, o Gran Cru, como dizem os franceses…
Nós chegamos a esse lugar porque buscamos o ponto mais alto, uma altura onde ninguém nunca tinha plantado. E o solo nos pareceu que teria boa qualidade, mas não fizemos uma análise. Se tivesse que fazer uma análise histórica, eu lhe diria que tivemos sorte em encontrar um lugar tão bom.
Qual é o peso da sorte e o peso da ciência na descoberta de um grande vinho?
A sorte é decisiva. Maquiavel dizia que em todo sucesso metade é virtú e metade, fortuna. Mas para os vinhos eu acho que é mais sorte que virtú. Sou um estudioso e um perfeccionista, mas a sorte foi fundamental na minha existência.
O Chile deu o salto de qualidade antes da Argentina?
Quando comecei a exportar, nos anos 1990, meu primeiro importador nos Estados Unidos era um chileno, que importava também o vinho Cousino Macul Antiguas Reservas, que custava US$ 5,95 a garrafa. Consegui colocar meu vinho a US$ 15. Os chilenos queriam se matar porque o vinho foi muito bem. Então os empresários chilenos, que são rápidos e capazes, mudaram toda sua tecnologia. A Argentina começou uma mudança e os chilenos nos seguiram.
A maior parte da produção de Catena Zapata é para exportação?
Exportamos mais do que vendemos no mercado interno. A exportação representa 60% de nossas vendas. Na China, nosso importador vende o Catena Zapata Antigua Reserva, o vinho mais caro da Argentina, a US$ 700 a garrafa.
O senhor teme o aquecimento global?
A temperatura muda completamente o sabor do vinho. Se o ano é frio tem um sabor, se é quente tem outro sabor. Então, por exemplo, o grande assunto hoje com essa questão da temperatura é o Pinot Noir, que cresce em um clima muito frio na Borgonha. Se houver aquecimento o sabor vai ser muito alterado. Fala-se que os grandes sabores, se o aquecimento aumentar, vão se perder. O aquecimento global é uma ameaça para os vinhos de alta qualidade.
Como o vinho argentino se posiciona hoje no mundo?
Precisamos distinguir o Malbec dos outros vinhos . No caso do Malbec, a minha conclusão é que a demanda por produtos de preços mais altos e produzidos em zonas mais frias continua crescendo entre os consumidores mundiais, mas os Malbec mais baratos estão estagnados. O resto dos vinhos argentinos, eu lhe diria que vão bem, mas estão crescendo lentamente.
Como o senhor vê o vinho brasileiro?
Não conheço muito, mas provei vinhos brancos excelentes do Brasil . Não saberia dizer que marcas são, não me lembro, mas eu provei e me surpreende que não estejam classificados entre os mais importantes do mundo.
Por onde passa a evolução do vinho argentino?
Diria que o futuro vai passar pelo descobrimento de novos terroirs. O novo mundo do vinho surgiu a partir dos anos 1980. Antes não existíamos internacionalmente. Então, eu lhe diria que a Argentina é muito nova nesse mercado e ainda está descobrindo os terroirs e, sobretudo, as melhores partes de cada vinhedo. A França faz isso há séculos.
O barão Rothschild disse que o senhor faz um marketing inteligente. Que marketing é esse?
É preciso explicar para as pessoas porque temos um vinho diferente dos outros. Tenho um modo de pensar mais racional, me comunico com meus potenciais consumidores e tento ser claro e preciso. Nisso eu me diferencio. E trato de ser direto no uso da linguagem e na descrição dos atributos dos vinhos que faço. Não é só dizer a verdade, mas explicar muito bem porque um determinado vinhedo produz um vinho com sabor tão marcante.
Vicente Vilardaga, IstoE