O rapaz anda pela cidadezinha para investigar como se deu a morte de seu pai pelos fascistas anos antes. Ao fundo, veem-se os moradores fazendo sempre as mesmas coisas, como se a vida fosse um círculo, e vai-se do presente para o passado sem que nada sinalize a mudança ao espectador. Mais: pai e filho são interpretados pelo mesmo ator, com diferenças apenas sutis de vestuário, e alguns personagens aparecem idênticos no antes e no agora. Fosse Bernardo Bertolucci um diretor e roteirista de talento nem tão pleno, o efeito poderia ser a mera confusão. Mas a ousadia estilística de um filme como A Estratégia da Aranha (1970) se casa com a inquietude que esteve no cerne de todo o seu trabalho: a ideia de que presente, passado e futuro são as categorias arbitrárias com que tentamos ordenar o caos da existência. Porém o caos persiste porque o passado nunca vai embora, o futuro nunca chega por inteiro e o presente não passa de um território de negociação — ou de atrito — entre eles. Engana-se, também, quem imagina que esse território pertence aos movimentos da história. Ele é, talvez, demarcado por eles, mas o que ocorre dentro de seus limites são batalhas íntimas e pessoais.
Morto na segunda-feira 26, aos 77 anos, de câncer, em Roma, Bertolucci deixa uma obra que, em seu conjunto, explora as múltiplas facetas dessas ideias. Nenhum filme as sintetiza tão bem quanto O Conformista, também de 1970, o título que o pôs no mapa: enquanto viaja para cometer um assassinato político, o protagonista é assaltado pelas imagens de seu passado — de novo, sem aviso para o espectador —, e é nelas que se deve buscar o que ele se tornou. Mas esse raciocínio está também no conforto regressivo com que os jovens de Os Sonhadores (2003) se poupam de crescer, discutindo cinema e revolução e fazendo sexo num apartamento de Paris durante o maio de 1968, enquanto, lá fora, os manifestantes creem que suas marchas pela cidade são uma encenação do futuro. Ou, ainda, na extraordinária trajetória do personagem-título de O Último Imperador (1987, premiado com nove Oscar, inclusive os de melhor filme e direção), que nasceu numa China de feudalismo ainda intacto, atravessou a ocidentalização da II Guerra e desaguou na revolução maoista de 1949 sem saber o que fazer de tanta história resumida na sua pessoa. Bertolucci ansiava por rupturas — mas, corajosamente, lamentava o que de precioso e inefável se perde com elas.
Com frequência, no cinema de Bertolucci, a obsessão erótica forma o casulo em que os personagens se refugiam — a relação incestuosa de uma mãe e seu filho em La Luna (1979); a paixão entre um pianista e sua empregada em Assédio(1998); e, é claro, a maneira como Marlon Brando e Maria Schneider se consomem em sexo em Último Tango em Paris (1972). A censura em países como a Itália, o Brasil e muitos outros só ajudou a espalhar a fama do filme. Há pouco, entretanto, num sintoma irônico desse enovelamento entre passado e presente, Tango se viu diminuído por outro tipo de censura: alegou-se que a célebre “cena da manteiga” teria sido uma violência contra Maria Schneider (que, sim, leu o roteiro, e só não sabia qual lubrificante seria usado).
Se Bertolucci se afiliou a diretores como Pier Paolo Pasolini (de quem foi assistente de direção) na vocação para transgredir no conteúdo e na linguagem, por outro lado herdou dos nomes da grande Hollywood dos anos 40 e 50 o senso de espetáculo: opulentos na encenação, operísticos no seu escopo histórico e imediatamente acessíveis na sua dramaticidade, os filmes de Bertolucci transparecem um desejo não muito em voga entre seus pares — o de encontrar seu público, comunicar-se com ele e imergi-lo nas suas narrativas. Fosse nos panoramas vastos de O Céu que Nos Protege (1990) e do hoje quase impossível de encontrar 1900 (1976), fosse na escala fechada de A Tragédia de um Homem Ridículo (1981), o diretor queria, mais do que um espectador, alguém com quem falar.
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