domingo, 4 de novembro de 2018

"Narrativas", por Samuel Pessôa

A democracia requer a distinção de fatos das narrativas. E requer reconhecer erros e corrigi-los.
A vitória de Bolsonaro representa o desejo de diversos grupos de reescrever nossa história. Construir uma nova narrativa. Certamente esse desejo não é compartilhado por todos os eleitores do capitão no segundo turno. Mas existe.
A narrativa que se deseja construir é que não houve ditadura militar, que não houve tortura e que a corrupção resulta da redemocratização. Essa narrativa fere fatos conhecidos de nossa história. E fatos são fatos, narrativas são narrativas.
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O presidente eleito, Jair Bolsonaro cumprimenta apoiadores em frente à sua casa, na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro - Tomaz Silva/Agência Brasil
A corrupção é perene na nossa história. Não há forma de combater a corrupção que não seja com independência do Judiciário e imprensa livre e vigilante. Ou seja, com democracia.
Mas, para diferenciar narrativas de fatos, será necessário reconhecer também que a narrativa de que a guerrilha defendia a democracia está factualmente errada.
Ou seja, se é fato que a ditadura torturou Dilma Rousseff, também é fato que toda a guerrilha lutou para instituir a ditadura que considerava correta.
Gente muito jovem, movida por paixões igualitárias e por uma ideologia não democrática, cometeu o erro de pegar em armas. Pagaram caro.
Não há simetria entre os crimes. Os guerrilheiros atuaram por conta e risco seus, enquanto a ditadura praticava seus crimes com o anteparo do Estado.
Também parece ser exagerada, e aqui ainda temos que esperar o juízo dos historiadores, a narrativa de que mensalão e petrolão sempre existiram, da forma e intensidade da de agora.
Analogamente, se é verdade que o Escola sem Partido pretende instituir práticas em sala de aula incompatíveis com a liberdade de expressão, é forçoso reconhecer que esse movimento reage a um processo de doutrinação nas disciplinas de história e geografia que constrói inúmeras narrativas factualmente erradas.
Não é verdade que a Inglaterra lutou contra o tráfico negreiro para vender tecidos na América, ou que a Guerra do Paraguai foi uma conspiração inglesa para destruir uma potência sul-americana autônoma, ou ainda que os europeus entravam dentro do território africano para aprisionar negros e escravizá-los, ou que os EUA enriqueceram pois exploraram os países pobres, e tantas outras bobagens a que nossos alunos são expostos.
Finalmente, se é verdade que a direita defendeu a ditadura por aqui, é verdade também que partidos de esquerda defendem ditaduras na América Latina ainda hoje. Não é coerente defender a Venezuela, como faz o PT, e achar que Bolsonaro é autoritário por afirmar que não houve ditadura por aqui.
Mesmo porque tanto as ditaduras venezuelana, nicaraguense e cubana quanto as ditaduras chilena, argentina e brasileira violaram, aquelas ainda violam, em massa os direitos humanos.
Ademais, na história do continente, as ditaduras ditas de direita terminaram. Algo acontece que faz com que os milicos retornem aos quartéis. As ditaduras ditas de esquerda não terminam e se mostram dispostas, para se perpetuar no poder, a expor seu povo a sofrimentos imensos na forma de desorganização econômica e perda de bem-estar.
A dita esquerda, se quiser continuar a pertencer ao campo democrático, terá de abandonar suas narrativas mentirosas e buscar os fatos. A democracia agradece.

Na coluna passada, referi-me ao presidente eleito, Jair Bolsonaro, como o tenente que se aposentou como capitão. A afirmação está errada. Quando Bolsonaro requereu a reforma, já era capitão. Agradeço aos colegas Pedro Jobim e Luciano Irineu de Castro pela correção.
Samuel Pessôa
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP


Folha de São Paulo