quinta-feira, 18 de agosto de 2022

'Perguntas aos que assinam a 'Carta pela Democracia', por Flavio Morgenstern

 Os signatários do documento acham democrático um inquérito em que a mesma pessoa investiga, julga e é suposta vítima?

Manifestantes se reúnem do lado de fora da Faculdade de Direito da USP, com cartazes a favor de Lula | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste
Manifestantes se reúnem do lado de fora da Faculdade de Direito da USP, com cartazes a favor de Lula | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste

Testemunhamos (admitimos que com certo tédio) a quizomba feita pela tal “Carta Pela Democracia”, lida na Faculdade de Direito da USP, que não disfarça muito que é uma carta pela candidatura do ex-presidiário Lula, pela hipertrofia do Judiciário (ou mais especificamente de dois tribunais em Brasília) em relação aos outros Poderes e abusando de clichês e cacoetes midiáticos. Também tem muitas exclamações.

Democracia está bem longe de ser uma garantia de liberdade. Bem pelo contrário: os maiores totalitarismos da história foram feitos em nome da democracia.

Desde o subtítulo do Neue Rheinische Zeitung, jornal de Karl Marx, que era “Organ der Demokratie” (quase igual ao de um certo jornal paulistano) até as Repúblicas Soviéticas ou Hugo Chávez e Muammar al-Gaddafi, toda sorte de tirano fala em nome da “democracia”.

O termo tampouco encontra homogeneidade de sentido e apreço entre os maiores cientistas políticos da história. Aristóteles o coloca como negativo em seu diagrama – posição que permanecerá inalterada quase até Locke. Bobbio afiança que “os problemas da democracia só se resolvem com mais democracia”, amalgamando assim o conceito de democracia com os de verdade, justiça, Paraíso na Terra e a Nuvem Rosa dos Ursinhos Carinhosos. Porém, Kenneth Minogue, Bertrand de Jouvenel, Ortega y Gasset, Nikolai Berdyaev e outros criticam a decadência intelectual que segue a democratização massiva e o ganho de votos com uma população cada vez menos culta e crítica.

A discussão no meio intelectual sério é ampla e milenar, mas não esperamos que os senhores entendam disto, principalmente porque não esperamos que entendam de muita coisa. Basta mesclar seu candidato com a democracia — ignorando que foi exatamente o que causou os Partidos-Estados dos totalitarismos do século XX — e voilà. Eis a Carta pela Democracia! Mas podemos elencar algumas perguntas para os senhores responderem com mais facilidade. Ei-las.

Perguntas aos signatários da auto-intitulada “Carta pela Democracia”

  1. Os senhores condenam negócios e financiamento de ditadores com dinheiro do povo brasileiro? Corolário, os senhores são a favor da prisão de empreiteiros, doleiros, políticos e negociadores que criaram obras faraônicas em ditaduras apenas para fortalecer o poder dos ditadores locais?
  2. Os senhores consideram democrático um inquérito sem objeto definido, sem finalidade estipulada, com prazo final adiado de maneira indefinida?
  3. Os senhores são a favor de condenar, por crime contra a democracia, todos os envolvidos em um inquérito no qual a autoridade investigadora é a mesma autoridade julgadora, e também a suposta vítima?
  4. Os senhores são a favor de punir como crime contra a democracia um inquérito no qual os advogados das vítim… digo, dos investigados não tenham tido acesso aos autos do processo mesmo após dois anos de pedidos? Os senhores são a favor de punir pelo “crime de fake news” quem afirmou que os advogados tiveram acesso integral a um processo que corre em segredo, e ninguém sabe do que está sendo acusado até hoje?
  5. Os senhores são a favor de buscas e apreensões nas casas de jornalistas em inquéritos secretos, sem que nenhum crime tenha sido cometido?
  6. Os senhores são a favor de criar o crime de opinião no Brasil, sem nenhum respaldo na lei, na Constituição, nos Códigos Penais, apenas por repetir palavras da mídia como “ataques” e “fake news”?
  7. Os senhores são a favor de prisão e assassinato de reputação de críticos a políticos e burocratas não-eleitos, afirmando serem “ataques”?
  8. Os senhores são a favor de punir, por crime contra a humanidade, os políticos de uma CPI que pediram quebras de sigilo telefônico e telemático, pedindo mensagens privadas (!), geolocalizações (!!), cópias do iCloud (!!!) e demais atos ditatoriais, contra pessoas que criticavam tais políticos? Lembrando que uma CPI que visou a investigar a falta de oxigênio no Amazonas não possui nenhuma competência para punir jornalistas só por não ir com a cara deles?
  9. Os senhores condenam como crime contra a democracia o ativismo judicial, quando juízes inventam leis de sua cabeça, contrariando a vontade do povo?
  10. Os senhores são a favor de uma democratização no processo de auditoria das urnas, ou devemos apenas confiar nos softwares sem entender seu funcionamento?
  11. Os senhores são a favor de eleições serem definidas por algoritmos de redes sociais que punem notícias apenas de um espectro político, sem nenhum critério objetivo e nenhum CPF para ser processado em caso de abuso?
  12. Os senhores são a favor de punir como crime contra a democracia a ordem de um Tribunal Eleitoral de desmonetização de canais dos quais os membros do Tribunal queiram ver no espeto, se o Tribunal não tem nenhuma competência para investigar, que dirá determinar punições sem nenhum processo legal?
  13. Os senhores votarão no PT?
  14. Os senhores têm alguma mensagem de solidariedade às vítimas do comunismo internacional?
  15. Os senhores acham que uma meia dúzia de palavras fortes é pior do que uma facada na barriga?
  16. Os senhores são a favor de punir mensagens associando um certo partido com uma certa organização criminosa, sendo que a associação é feita graças a uma delação premiada homologada pelo STF? Os senhores são a favor de punir algum dos envolvidos?
  17. Corolário de 16, os senhores são a favor de punir, na mesma toada, qualquer associação de um político de outro lado do espectro com a calúnia de aproximação do fascismo ou genocídio?
  18. Os senhores são a favor da extradição de jornalista por uns palavrões? Como os senhores pretendem explicar os “crimes” de opinião de jornalistas para constitucionalistas americanos?
  19. Os senhores são a favor de punir gestos, dando a eles a interpretação que der na telha dos senhores?
  20. Como os senhores se sentem sendo chamados de “os mesmos intelectuais de ideias mofadas de sempre” pela jornalista Barbara Gancia?

Se os senhores puderem responder apenas a uma questão, respondam por obséquio à última.

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs"

Revista Oeste