segunda-feira, 29 de agosto de 2022

'Doce papelão', por Guilherme Fiuza

 

Luiz Inácio Lula da Silva é entrevistado por William Bonner e Renata Vasconcellos no Jornal Nacional| Foto: Marcos Serra Lima/G1/Divulgação


Lula foi sabatinado de forma rigorosa e implacável na TV. Melhores momentos:


- Candidato, o senhor não deve nada à Justiça.


- Gostei disso. Pode repetir?


- Claro: candidato, o senhor não deve nada à Justiça.


- Rapaz, me fez um bem danado ouvir isso. Se importa de repetir só mais uma vez?


- Imagina. Candidato, o senhor…


- Desculpe. Se não for pedir demais: será que você poderia falar olhando para aquela câmera? Acho que passa mais verdade.


- Sem problemas. Deixa só eu ajeitar minha cadeira pra não ficar torto.


- Claro, se ajeita aí. Capricha na postura, hein? Ahahaha.


- Ahahaha. Pode deixar. E vou te confessar que adorei o seu pedido.


- Por que?


- Porque eu fico lindo naquela câmera.


- Tá. Então chega de embromar e repete aquela coisa linda que você disse.


- Deixa comigo: candidato, o senhor não deve nada à Justiça.


- Ai, que delícia. Eu ficaria a noite inteira te ouvindo dizer isso, com essa voz macia. Será que vocês podem me mandar um DVD com essa gravação?


- Não trabalhamos mais com DVD. Mas com certeza a produção providencia o arquivo pro senhor.


- Agradeço a compreensão. Sofri muito com toda essa perseguição.


- Imagino. Vou até aproveitar esse gancho pra continuar a sabatina: o senhor se sente o Mandela brasileiro?


- Bem, eu…


- Candidato, o senhor é o Mandela brasileiro. E não deve nada à Justiça.


- O que eu estou achando legal nessa sabatina é o conhecimento que vocês têm das coisas.


- Nós nos preparamos muito para este momento.


- Eu notei. Jornalista que não tem conhecimento fica fazendo pergunta. Vocês vão logo afirmando, o que economiza um tempo enorme.


- Tempo na televisão vale ouro.


- Sei disso. Podem continuar assim então.


- Obrigado, candidato.


- De nada. Mas se quiserem que eu comente alguma coisa fiquem super à vontade. Só me avisem com antecedência que eu vou tirar uma soneca.


- Campanha cansa, né?


- Nem fala. Tô um caco. Pelo menos não ando mais na rua.


- Rua é horrível. Só tem povo e fascista.


- E eu descobri que fico bem nas pesquisas mesmo sem fazer nada. Então só fico encontrando os meus puxa-sacos. Mas não pensem que isso não cansa.


- Claro que cansa!


- Querido, pode falar mais baixo que estou tentando dormir?


- Desculpe, me empolguei.


- Não tem problema. Agora continua a sabatina por favor pra eu pegar no sono.


- Deixa com a gente.


- Mas continuem naquela linha do jornalismo esclarecido, tá? Vocês falam e depois eu assisto no DVD.


- Tranquilo.


- Então fala aí.


- Ok. Candidato, o senhor não deve nada à Justiça.


- Essa parte eu já ouvi.


- É que o senhor gostou tanto, achei que ajudaria a relaxar.


- Gostei, mas agora já está me enjoando. Tem outra frase boa aí?


- Várias.


- Então podem ir falando. Estou de olho fechado mas estou ouvindo.


- Ok. Prosseguindo com a sabatina: candidato, o triplex não era seu.


- Impressionante o conhecimento de vocês. Assim é muito fácil relaxar.


- Fique à vontade, candidato.


- Estou super à vontade. Já que vocês não perguntaram nada, posso perguntar?


- Claro. A casa é sua.


- Era sobre isso mesmo que eu queria perguntar. Será que eu posso morar aqui com vocês?


- Mas nós não moramos aqui, candidato.


- Ah, não? Eu vejo vocês sempre aqui, achei que morassem.


- Muita gente acha. Mas nós temos as nossas casas.


- Posso ir pra lá com vocês?


- Candidato, desculpe perguntar: o que houve com aqueles seus imóveis que não eram seus?


- Tá tudo bem, não precisam se preocupar. É que em nenhum deles eu me sinto tão bem quanto aqui com vocês.


- Que legal. Nós também estamos nos sentindo muito bem. Quem sabe a gente não combina um fim de semana no sítio de um amigo seu?


- Por que fim de semana? Podemos ir agora. A gente continua a sabatina lá.


- Pode ser. Mas e o público?


- Avisa que por uma questão de privacidade ele não vai poder acompanhar essa parte.


- Tá bom. Vou avisar agora.


- Então olha pra aquela câmera, pra passar mais credibilidade.


- Boa. Lá vai: comunicamos aos telespectadores que a partir desse momento a sabatina do candidato Lula ocorrerá no sítio dele que não é dele. Por uma questão de privacid…


- Calma! Melhor dizer que não vai dar pra transmitir essa parte porque a antena da Oi quebrou.


- Ok. Bem, como os caros telespectadores devem ter ouvido o candidato falar, daqui em diante a sabatina não poderá ser transmitida. Mas a nossa audiência pode confiar que continuaremos sendo rigorosos e implacáveis com o candidato. Nosso compromisso é com a isenção.


- Isso aí.


- Ficou bom?


- Se melhorar, estraga.


- Ótimo. Partiu?


- Partiu.


- Só vou dar uma passada em casa pra pegar o protetor solar. Parece que amanhã o tempo vai abrir.


- Não precisa. Tem lá.


- Protetor solar?


- Proteção de todos os tipos que você precisar.

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