O ministro do STF Alexandre de Moraes, que determinou operação policial contra empresários.| Foto: Nelson Jr./ STF
A revolta de parte da sociedade brasileira diante de um novo avanço do Supremo Tribunal Federal sobre as liberdades individuais foi tanta que o ministro Alexandre de Moraes abriu uma exceção ao sigilo completo que tem marcado os inquéritos abusivos que conduz. Alegando que “as diligências iniciais pendentes” já foram concluídas e que houve “inúmeras publicações jornalísticas” críticas, Moraes tornou pública a documentação sobre a operação contra oito empresários que teriam defendido um golpe de Estado em conversa privada realizada pelo WhatsApp. E, como era de se esperar, a divulgação dos textos apenas confirmou o que já se intuía: que não havia substância alguma na perseguição movida contra o grupo.
Já é estarrecedora a primeira peça, a representação da Polícia Federal solicitando que Moraes autorize a busca e apreensão contra os empresários. Nela, o delegado Fábio Shor afirma que “vários empresários estariam participando de um grupo no aplicativo de mensagens WhatsApp para arquitetar uma ruptura do Estado Democrático de Direito”, mas, para embasar tal afirmação, usa apenas as mesmas conversas tornadas públicas pelo portal Metrópoles semanas atrás e nas quais nem de longe se pode verificar algum tipo de orquestração. Ninguém ali está “arquitetando” nada, mas apenas exprimindo suas opiniões e preferências – deploráveis, mas jamais criminosas, como explicamos detalhadamente na semana passada, neste mesmo espaço.
Transformar opiniões e conjecturas feitas privadamente em motivo para medidas extremas que violam direitos básicos como a privacidade é coisa de Estados totalitários
A convicção ilusória de que os oito empresários estariam ativamente tramando uma ruptura institucional foi tanta que Shor nem sequer mencionou os crimes de apologia ou incitação ao crime. O delegado preferiu citar diretamente os crimes de constituição de milícia privada, previsto no artigo 288-A do Código Penal (“Constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código”) e de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, descrito no artigo 359-L (“Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”).
Nem mesmo as mentes mais férteis teriam como concluir, das conversas publicadas, que os diálogos poderiam levar seus autores a responder por algum desses crimes. Dizer preferir um golpe a uma vitória de Lula ou mesmo afirmar que o golpe deveria ter ocorrido anos atrás não é “tentar abolir o Estado de Direito”, muito menos “constituir organização paramilitar”.
E sempre é preciso lembrar que, dos oito empresários perseguidos, apenas três fizeram menções a golpe de Estado; os demais trataram de outros assuntos, também considerados tabus por quem faz as regras do processo eleitoral – por mais que a “manifestação crítica aos poderes constitucionais” esteja explicitamente protegida pela nova lei de crimes contra o Estado Democrático de Direito, há tempos os ministros do STF e do TSE decidiram que tais manifestações são “ataques” que precisam ser coibidos usando a força do braço estatal.
Como se não bastasse o estabelecimento de um “crime de opinião”, o delegado pediu, e Moraes endossou, o acréscimo de mais uma figura ao arsenal liberticida do ministro relator: o “crime de cogitação”. Tanto a representação quanto a ordem de busca e apreensão citam uma mensagem específica na qual um dos empresários fala em “dar um bônus em dinheiro ou um prêmio legal pra todos os funcionários das nossas empresas”, sem detalhar em que condições isso se daria, com a ressalva de que “temos que ver se não é proibido”; um outro responde, dizendo acreditar que “seria compra de votos” e o assunto morre ali.
Ainda que a concessão de valores financeiros a funcionários possa configurar abuso de poder econômico, a conversa não passou da menção a uma ideia rapidamente descartada. Pretender criminalizar ou mesmo investigar meras cogitações não concretizadas é algo que nem mesmo a ditadura militar brasileira chegou a fazer; seria uma espécie de “Minority Report da vida real”, em referência ao conto de ficção científica, posteriormente adaptado ao cinema, em que os poderes premonitórios de um grupo de mutantes levam pessoas a serem presas antes de efetivamente cometer algum crime.
Transformar opiniões e conjecturas feitas privadamente em motivo para busca e apreensão, bloqueio de contas bancárias, suspensão de perfis em mídias sociais, quebra de sigilos e outras medidas extremas que violam direitos básicos como a privacidade – só não houve prisão, embora ela tivesse sido solicitada por um trio de deputados federais do PT – é coisa de Estados totalitários, como lembrou à Gazeta do Povo o especialista em Direito Eleitoral Adriano Soares da Costa. É o arbítrio que se impõe não pela força dos tanques, mas das canetas; que se disfarça de normalidade institucional apenas porque as formalidades processuais continuam a ser seguidas.
Os inquéritos conduzidos por Moraes já contêm abusos suficientes para dar como certo seu caráter antidemocrático, como a mistura entre vítima, investigador, acusador e julgador; o fato de quase todos os investigados em tais inquéritos não terem prerrogativa de foro; e a violação do direito à ampla defesa. Mas o que está sendo construído pelo STF e tolerado graças ao silêncio cúmplice de muitas entidades da sociedade civil organizada e de formadores de opinião vai ainda mais longe: só totalitarismos vigiam e perseguem opiniões.
Gazeta do Povo