sexta-feira, 22 de abril de 2022

'Terrorismo urbano', por Sílvio Navarro


Veículos foram incendiados em frente a unidades da Polícia Militar na cidade de Guarapuava, Paraná | Foto: Reprodução/Twitter


 Quadrilhas impõem terror no interior do país e reabrem o debate sobre a necessidade de leis mais duras contra o crime organizado


Eram 22 horas do domingo 17 quando a BR-277, rodovia que corta o Paraná de Foz do Iguaçu até o Porto de Paranaguá, foi bloqueada. Dois caminhões incendiados, nos quilômetros 330 e 353, atestavam que algo muito errado estava acontecendo.

Um pouco mais adiante está Guarapuava, cidade de 200 mil habitantes e um entroncamento rodoferroviário de produção de cereais. Naquela noite, 30 homens armados até os dentes cercaram o município a bordo de 12 carros blindados — quatro foram queimados depois, para retardar a perseguição policial. Tinham equipamentos de guerra: três metralhadoras ponto 50, capazes de derrubar um helicóptero da Polícia Militar, fuzis 7.62 e AK-47, capacetes e coletes à prova de balas, explosivos, drones, pistolas e kits de primeiros socorros.

O grupo se espalhou pela cidade. Uma parte atacou a sede do 16º Batalhão da PM a tiros. Os demais cortaram o fornecimento de energia em diferentes regiões e atearam fogo em carros.

No escuro, a cidade entrou em pânico. Gritos eram ouvidos das janelas de prédios, conforme vídeos que circularam nas redes sociais. A exemplo do que ocorreu em Araçatuba, no noroeste de São Paulo, no ano passado, os bandidos usaram moradores que estavam nas ruas como escudo humano, mas, diferentemente das outras quadrilhas, não conseguiram chegar ao cofre de uma empresa de transporte de valores. Fugiram com as mãos vazias.

A ação durou quase quatro horas. Dois policiais e um morador foram baleados. Os assaltantes abandonaram carros e munições e fugiram pela mata. Ninguém foi preso.

“Foi uma noite de horror”, disse o prefeito, Celso Góes (Cidadania). A população ficou apavorada durante quatro horas. Mas o plano da polícia funcionou, porque não houve confronto em área urbana, mas, sim, na rural. Aquela área da empresa de valores é residencial.”

A fuga

Eles deixaram para trás armas de uso das Forças Armadas. A PM não tem esses armamentos”, afirmou Góes. “Quando uma cidade de 200 mil habitantes imagina que vai ficar refém de 30 bandidos? Fizeram o que quiseram, dispararam tiros e fizeram reféns. É um estado de guerra.”

Um blindado do Exército, modelo Guarani, foi filmado nas ruas. Em nota, a explicação foi que se trata de um protocolo para “reforçar a segurança de instalações de administração militar que estão localizadas fora do perímetro do 26º Grupo de Artilharia de Campanha”. Ou seja, proteger o quartel.

As escolas suspenderam as aulas e o comércio fechou as portas na manhã seguinte. O esquadrão antibombas de Curitiba desarmou os explosivos deixados para trás pelo bando.

Na terça-feira 19, uma equipe do Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais) encontrou o arsenal usado pelos criminosos em um sítio na cidade de Araçariguama, no interior paulista, a nove horas de distância do local do ataque. O dono do terreno não foi localizado. O caseiro prestou depoimento e foi liberado.

Mais uma vez, as cenas hollywoodianas captadas pelos celulares de moradores são chocantes. Por que elas se repetem?

O crime compensa

Esse tipo de cena de guerra acontece no Brasil a cada três meses, porque a legislação contra o terrorismo urbano é frouxa. Foram dezenas de ataques em grande escala realizados nos últimos meses — os principais ocorreram em Araçatuba, Criciúma, Ourinhos, Varginha e Botucatu. O nome técnico desse tipo de ação é “domínio de cidades”, popularmente apelidado de “novo cangaço”.

Em geral, o planejamento da ação e o aluguel dos equipamentos são patrocinados pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), que fica com uma parte graúda do dinheiro roubado. No caso de Araçatuba, um dos integrantes confessou, quando foi preso, em Sorocaba (SP), que investiu R$ 600 mil para preparar todo o ataque.

Além de empresas de valores, os principais alvos são os Serets (tesourarias regionais do Banco do Brasil). Na maioria das vezes, os investigadores chegam a um funcionário que comunicou os chefes das quadrilhas da chegada de altas remessas em cédulas. Essas agências solicitam, inclusive, reforço de segurança na virada do mês, quando há um volume de saques de benefícios sociais do governo e aposentadorias.

“É uma ação que demora para ser executada. Eles estudam as rotas de fuga, alugam carros velozes e blindados, tiram fotos e circulam pelas cidades”, afirma Diógenes Lucca, tenente-coronel da reserva da Polícia Militar e fundador do Gate (Grupo de Ações Táticas Especiais do Estado de São Paulo). “Usam explosivos plásticos, munição de calibre pesado, espalham miguelitos (pregos retorcidos para furar os pneus das viaturas em perseguição) e pilotam drones (para orientar a fuga).”

A captura dos envolvidos é lenta. A tipificação penal é pior: são enquadrados em artigos relacionados a roubo e formação de quadrilha, o que pode resultar em penas brandas.

“A legislação que precisa ser ajustada é a 13.260, de 2016, só aprovada com urgência naquele ano por causa da Olimpíada do Rio e que ficou muito ruim”, diz o deputado Guilherme Derrite (PP-SP), capitão da Rota (Rondas Ostensivas Tobias Aguiar). “No Brasil, só é crime de terrorismo se for provocado por xenofobia, raça, etnia ou religião. A legislação é benevolente.”

Para avançar no endurecimento da legislação, a Câmara precisa finalizar a votação do Projeto de Lei 149, que tramita há 20 anos no Congresso, mas só agora avançou na Comissão de Segurança Pública. Falta o aval da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e depois do plenário.

O parecer aprovado na comissão é um compilado de 28 projetos sobre o tema. Diz o texto assinado por Derrite: “Os verdadeiros atos terroristas foram extirpados do amparo da lei, como aqueles motivados exclusivamente por questões econômicas. Por exemplo, o uso de explosivos ou armas de fogo contra instituições financeiras, base de valores ou carros fortes ou até mesmo a prática do crime coloquialmente denominado de ‘novo cangaço’, que, para a subtração de altas quantias de dinheiro, utiliza estratégias sorrateiras, como obstruir a atuação das forças de segurança pública por meio do rompimento do fluxo do local, aterrorizando populações inteiras de pequenas cidades”.

A estimativa do Ministério Público é que o PCC movimente US$ 500 milhões somente com o narcotráfico

Também há propostas para o agravamento da condenação para quem participou do planejamento dos atos, inclusive com cumprimento da pena em presídios de segurança máxima. É uma tentativa de impedir que o PCC invista ainda mais nessa modalidade de crime.

Desde 2016, há enorme resistência nas bancadas de partidos de esquerda e seus aliados à Lei Antiterrorismo. O argumento é que se cria uma licença para “tolerância zero” dos policiais. Afirmam que serão criminalizados integrantes de movimentos sociais, como o MST e os sem-teto, e militantes que acabam sendo detidos quando protestos degeneram em depredações e pneus queimados.

Novo negócio do PCC

Segundo investigadores do Gaeco (grupo de repressão ao crime organizado do Ministério Público), rastrear ações do PCC tem sido uma tarefa cada vez mais árdua. Nos últimos anos, a organização aprendeu a lavar dinheiro de forma estruturada, espalhou contas bancárias pelo mundo e diversificou seus “negócios”.

“Virou uma verdadeira multinacional do crime”, define o promotor Lincoln Gakiya, que combate a facção há 17 anos em Presidente Prudente (oeste paulista), onde estão trancafiados alguns dos chefões do bando.

A estimativa do Ministério Público é que a facção movimente US$ 500 milhões somente com o narcotráfico. O “novo cangaço” (aluguel de armas, equipamentos e mão de obra) e o roubo de cargas têm contabilidade paralela.

A estrutura segue piramidal, com cerca de 40 mil recrutados por ano, que passam pelos chamados “batismos”. As prisões nunca quebraram o negócio e há líderes importantes em atividade. “Não há vácuo de poder”, diz Gakiya.

Dos líderes fora da cadeia, os investigadores prenderam nesta semana Valdeci Alves dos Santos, o Colorido, no interior de Pernambuco. Ele dividia o comando do tráfico nas ruas com Marcos Roberto de Almeida, o Tuta, cujo paradeiro é incerto. Os outros “cabeças” são Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, e André do Rap. O primeiro é um personagem bem conhecido, condenado a 300 anos de prisão. Foi transferido em março para Porto Velho (RO) e está doente — em 2018, um plano para resgatá-lo que envolveria 500 homens treinados no exterior foi interceptado.

André do Rap foi solto no ano passado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e fugiu assim que colocou os pés na rua. Foi visto pela última vez na Bolívia. Restam ainda os advogados, conhecidos como “gravatas”.

“O PCC já entrou no estágio de organização mafiosa. É a que mais cresce na América do Sul, com braços na Europa”, afirma Gakiya.

É consenso entre as forças de segurança que o único caminho para enfraquecer as facções é o estrangulamento financeiro e a aplicação de penas mais severas.

Mais um pacote anticrime

Paralelamente à iniciativa da Câmara, o governo federal encaminhou a deputados e senadores um minipacote com projetos de lei para endurecer penas. O empenho na área da segurança pública foi uma das moedas usadas pelo presidente Jair Bolsonaro para convencer o ministro Anderson Torres a permanecer no Ministério da Justiça e não disputar as eleições. A previsão de investimentos é de R$ 1 bilhão nas polícias no próximo ano.

Um dos projetos enviados acertaria em cheio o “novo cangaço”. O texto pretende alterar a Lei de Organizações Criminosas (12.850/2013) para punir os envolvidos nesse tipo de ataque com até 20 anos de cadeia.

“Chegar a uma cidade, incendiá-la, tocar fogo em banco, atirar contra a polícia? Isso causa terror nas pessoas”, disse o ministro Anderson Torres, nesta semana. “É um tipo de terrorismo. O Estado não pode permitir esse tipo de coisa.”

A lista ainda contempla o chamado excludente de ilicitude, que ameniza punições para agentes de segurança pública que cometerem excessos durante confrontos, endurecimento da Lei de Execução Penal (aumentar o porcentual de pena cumprida antes da progressão de regime), o pagamento de indenização a vítimas de atos criminosos com uso de penhora de bens e do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) do condenado.

A necessidade de leis mais rigorosas, contudo, capazes de intimidar a bandidagem e apertar o cerco contra a sofisticação das facções criminosas, é latente. Esse é o papel do Congresso Nacional — se não agora, pelo menos do que será eleito em outubro.

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Revista Oeste