Uma parcela numerosa da sociedade alimenta a ilusão segundo a qual a máquina estatal entregará aquilo que ela ou o povo deseja
Toda vez que privilégios de parte dos servidores públicos são expostos, a estupefação da sociedade logo dá lugar à indignação. Legítima indignação, diga-se. O grande equívoco é o debate ser reduzido aos privilégios de uma parcela dos funcionários do Estado. Porque o próprio Estado é, por meio dos representantes eleitos pelo povo, o primeiro a ser privilegiado de uma lista que aumenta de tempos em tempos.
Como corolário desse mecanismo de concessão de privilégios, políticos (que decidem) e servidores (que para eles trabalham) são o segundo grupo a ser beneficiado. Ser funcionário estatal facilita a pressão sobre os políticos e a construção de uma relação que beneficia mutuamente as partes envolvidas e cuja conta será paga pelos indivíduos que trabalham na iniciativa privada.
É a partir dessa hierarquia engenhosa erigida por políticos e servidores que são priorizados os demais beneficiários que estão fora do Estado, desde aqueles próximos ao poder aos que compram quem tem poder, para só depois serem atendidas faixas da população em razão de suas singularidades (pobreza, cor da pele, sexo etc., etc., etc.).
Assim, aprofunda-se o problema fundamental: uma administração pública, sobretudo a federal, que tem por finalidade prática objetiva sua própria manutenção e não servir à sociedade que a sustenta.
Assim, aprofunda-se o problema fundamental: uma administração pública, sobretudo a federal, que tem por finalidade prática objetiva sua própria manutenção e não servir à sociedade que a sustenta.
As justificativas de que é preciso mais dinheiro é mero artifício para os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário continuarem gastando mal e de forma ineficaz.
E eles gastam uma soma extraordinária de riqueza que é legalmente espoliada de quem a produz. Uma parcela numerosa da sociedade ainda cai na armadilha de pedir que as instituições façam mais, alimentando a doce ilusão segundo a qual a máquina estatal entregará aquilo que ela ou o povo deseja.
O resultado desse autoengano é um só: aumento do Estado e aumento da tributação usando como desculpa a “vontade popular”. Por essa razão, a frase de Jean-Baptiste Colbert no século 17 continua atualíssima: tributação é a arte de “depenar o ganso de modo a obter o máximo possível de penas com o mínimo possível de grasnido”.
Como reação inócua e burra ao custo e à incompetência do Estado, muitos têm gravado no espírito o mantra “eu tenho e quero meus direitos”.
Quando tais “direitos” não são respeitados, buscam privilégios. Muitas vezes, aquilo que é invocado como direito não passa, aliás, de privilégio. Faz parte dessa artimanha que resulta em aumento do Estado e das benesses para os eleitos de ocasião a confusão entre direitos e privilégios. Mas o que são, afinal, direitos e privilégios?
Como explico em meu livro Direitos Máximos, Deveres Mínimos — O Festival de Privilégios Que Assola o Brasil (Editora Record, 2018), direito é aquilo que vale para todos, sem nenhuma distinção; privilégio é aquilo que vale para parcela ou parcelas da sociedade em razão de alguma especificidade.
O economista norte-americano Lawrence W. Reed propõe um teste eficaz: aquilo que é apontado como um direito pode ser usufruído por todo mundo “ao mesmo tempo e da mesma maneira”? Se a resposta for positiva, estamos diante de um direito; se negativa, diante de um privilégio. Caso um indivíduo afirme que tem determinado direito, não poderá negá-lo a qualquer outra pessoa, pois, sendo um direito, pertencerá a ele e a qualquer outro indivíduo.
Tanto o direito quanto o privilégio são termos neutros. Por isso mesmo, um privilégio pode ser justificável ou injustificável.
Bolsa Família, por exemplo, cujo objetivo é ajudar famílias pobres, é um privilégio justificável; subsídio a segmento econômico é um privilégio injustificável. Faça esse teste com os exemplos que lhe vêm à cabeça e verá que muito daquilo que você julgava ser um direito é, na verdade, um privilégio.
Essa perspectiva permite compreender o problema de forma mais abrangente e atacá-lo de maneira mais competente. Porque, se só se reconhece como privilégio aquilo que beneficia políticos e servidores, estaremos negligenciado os privilégios mínimos e máximos que já existem para beneficiar as pessoas físicas, de agraciados com a meia-entrada a alunos de universidades estatais, de trabalhadores formais a grandes empresários, da Ordem dos Advogados do Brasil a criminosos.
Todos exemplos de privilégios injustificáveis cujos detalhes explico em meu livro.
Todos exemplos de privilégios injustificáveis cujos detalhes explico em meu livro.
Não há dúvida de que os privilégios injustificáveis desfrutados por uma elite do funcionalismo estatal é a parte mais visível, mais onerosa e mais execrável do festival de privilégios que assola o Brasil. Mas não é a única e se sustenta numa visão ainda mais profunda e nefasta segundo a qual o Estado deve ser o grande protagonista da vida social, política e econômica, segundo explico em meu livro Pare de Acreditar no Governo – Por Que os Brasileiros não Confiam nos Políticos e Amam o Estado (Editora Record, 2015).
Segundo essa perspectiva, não é o indivíduo que luta para obter o que quer que seja, desde sua liberdade individual até sua liberdade econômica; qualquer coisa, inclusive as liberdades, são concessões estatais e não conquistas individuais.
Segundo essa perspectiva, não é o indivíduo que luta para obter o que quer que seja, desde sua liberdade individual até sua liberdade econômica; qualquer coisa, inclusive as liberdades, são concessões estatais e não conquistas individuais.
A delegação de responsabilidades para que o Estado resolva problemas sociais e morais, como explicou o filósofo Kenneth Minogue em seu livro A Mente Servil — Como a Democracia Solapa a Vida Moral (É Realizações, 2019), corrói a moral individual e inviabiliza a prática da liberdade. Como agravante, existe o fato de que, mesmo quando se defende um direito (aquilo que vale para todos), inexiste qualquer preocupação em vinculá-lo a um dever, a uma obrigação (algo que se discute desde a Grécia Antiga).
Como superar esse drama individual que se manifesta amplamente na vida social e política e do qual os privilégios são seu corolário?
O primeiro passo é assumir a responsabilidade que nos cabe e parar de terceirizá-la para político, para instituições políticas, para terceiros. Sem isso, continuaremos a ser servos voluntários de um sistema que beneficia verdadeiramente quem nele manda, quem nele trabalha, quem ele corrompe, quem ele privilegia.
O primeiro passo é assumir a responsabilidade que nos cabe e parar de terceirizá-la para político, para instituições políticas, para terceiros. Sem isso, continuaremos a ser servos voluntários de um sistema que beneficia verdadeiramente quem nele manda, quem nele trabalha, quem ele corrompe, quem ele privilegia.
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Bruno Garschagen é cientista político, mestre e doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa) e autor dos best-sellers Pare de Acreditar no Governo e Direitos Máximos, Deveres Mínimos (Editora Record).
Revista Oeste