Quando outubro terminar, ele sairá de cena. Seja qual for o desfecho do voo, descobrirá que está proibido de bater asas em paz até mesmo na cidade em que nasceu
A Justiça passava diante do portão da casa dos meus pais às 2 da tarde em ponto, dois minutos depois de despontar na esquina da Rua General Glicério com a Praça Horácio Ramalho aquele homem de terno sempre escuro e bem cortado, o paletó jaquetão todo abotoado, o nó Windsor da gravata em tonalidades sóbrias enlaçando o colarinho da camisa impecavelmente branca, calçando sapatos de cromo alemão que nunca deram as caras nas vitrines das lojas da cidade. Ele nem chegara aos 40 anos, mas a ausência de rugas no rosto era anulada pela austeridade do semblante, raramente desarmada por um sorriso tímido, e pela deserção dos cabelos nos flancos do crânio, que procurava atenuar com o penteado horizontal que mantinha cada fio em seu lugar. Era bonita de ver a aparição de Ennio Bastos de Barros, o juiz da comarca de Taquaritinga, em sua caminhada vespertina rumo ao fórum da cidade.
A aparição da figura que personificava a Lei e a Ordem, reprisada de segunda a sexta-feira, produzia efeitos colaterais imediatos. Os suspeitos de sempre e, por via das dúvidas, também os inocentes de carteirinha mudavam de calçada e apressavam o passo. Os moleques que chutavam uma bola no meio da rua interrompiam o futebol mesmo se houvesse perigo de gol, e tratavam de refugiar-se nos quintais. Sobrevinha o silêncio espesso reservado às procissões dos dias de santo forte, valorizadas pela presença estelar do bispo de São Carlos. Só os adultos moradores da quadra assomavam às janelas para saudar a passagem do juiz com sobrenome de paulista quatrocentão: “Boa tarde, doutor”. Ele retribuía o cumprimento num tom quase inaudível e seguia seu curso. Ficava a sensação de que as coisas são permanentes e que o mundo não iria acabar.
Os juízes da minha infância nunca se intrometeram na esfera de atuação do prefeito e dos vereadores
Naquele crepúsculo dos anos 50, magistrados mereciam respeito. Nesta segunda década do século 21, como seria recebido um juiz do Supremo Tribunal Federal que aparecesse de repente na rua de uma pequena cidade que tratava com reverência um juiz de primeira instância? Melhor evitar uma experiência de alto risco. As transmissões da TV Justiça ampliaram extraordinariamente o número de brasileiros capazes de recitar sem tropeços a escalação do time da toga. Muita gente reconhece (de frente e de perfil) os 11 titulares. Sabe o que eles fizeram no verão passado — e também nas demais estações do ano. Conhece as jogadas de cada um. Acompanha com lupa a desenvoltura com que andam entrando em campos alheios. E não está gostando do que vê.
Os juízes da minha infância nunca se intrometeram na esfera de atuação do prefeito e dos vereadores. Quem desrespeita limites não pode cobrar respeito nem dos capinhas — aqueles funcionários do STF que durante as sessões permanecem de pé atrás das cadeiras dos semideuses de araque. Até a virada do século, dez em cada dez inscritos no Enem seriam contemplados com um rotundo zero se convidados a desenhar os nomes de três ministros do Supremo.
As coisas mudaram em 2012 com o julgamento do Mensalão. Uma imensidão de brasileiros descobriu como funcionava o mundo das onze sumidades, viu quem prendia, quem soltava, quem segurava o jogo e quem confundia bola com trave. A maioria dos torcedores aplaudiu o desempenho do relator Joaquim Barbosa, que fez o possível para engaiolar os quadrilheiros, e gostou da expressão criada por Celso de Mello para resumir o que movia José Dirceu e seus comparsas: “um projeto criminoso de poder”. Celso de Mello foi bem até decidir prorrogar o jogo que terminara com a derrota dos larápios no tempo regulamentar.
Um Rui Barbosa em compotas, que recheia o texto dos votos cuja leitura nunca dura menos de três horas com termos que parecem exumados
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Ser ministro do STF não é pouca coisa. O dono de uma toga ganha o maior salário do funcionalismo público. É indemissível. Diferentemente dos passageiros comuns, aguarda a hora do embarque em salas especiais dos aeroportos. Nunca é visto numa fila. Alcança o avião em veículos privativos e sobe a escada antes de todo mundo. Senta-se na primeira fileira de poltronas e não paga a passagem — essa despesa também fica por conta dos pagadores de impostos. Quando decide que isso tudo é cansativo, requisita um jatinho da FABTur. Preparada por cozinheiros competentes, a comida servida aos ministros talvez conseguisse uma estrela no Guia Michelin.
Premiado com uma toga pelo presidente José Sarney, esse paulista de Tatuí pousou no STF em 1989. Tinha 44 anos. Em 2007 virou decano, título conferido ao mais antigo integrante da Corte. Por algum motivo misterioso, demorou cinco anos até decidir, durante o julgamento dos mensaleiros, que quem é Decano, com maiúscula, não é gente como a gente — e também é superior aos colegas. Assim nasceu o Pavão de Tatuí. Nada a ver com alguma reencarnação do Águia de Haia. O Pavão de Tatuí é um Rui Barbosa em compotas, que recheia o texto dos votos cuja leitura nunca dura menos de três horas com termos que parecem exumados da Biblioteca de Alexandria. Celso de Mello raramente chama o local do emprego de Supremo Tribunal Federal. Prefere três expressões sinônimas: “Pretório Excelso”, “Colenda Corte” e “Egrégio Tribunal”. Pretório era a denominação de um tipo de fortificação romana. Excelso quer dizer “sublime”. Colendo significa “respeitável, venerando”. Egrégio quer dizer “insigne, nobre, eminente”.
Seu sonho é afastar Bolsonaro do cargo que alcançou nas asas do voto popular
A cinco meses da aposentadoria compulsória, uma sumidade dessas não poderia negar ao Brasil e à cidade natal um voo de condor andino. Para tanto, reincorporou o promotor de Justiça da mocidade e escolheu como alvo o presidente da República. No começo deste ano, enxergou num vídeo divulgado por Jair Bolsonaro num grupo de WhatsApp uma gravíssima ameaça ao Estado Democrático de Direito, por revelar “a face sombria de um presidente que demonstra uma visão indigna de quem não está à altura do cargo que exerce e cujo ato de inequívoca hostilidade aos demais Poderes da República traduz gesto de ominoso desapreço e de inaceitável degradação do princípio democrático”.
A ausência de vírgulas deve ter consumido o fôlego do Decano. Depois de algumas semanas de recesso, ele voltou a sobrevoar o Palácio do Planalto. Em duas arremetidas sucessivas, tentou confiscar o celular do presidente e promoveu a exibição, na íntegra, de uma reunião do primeiro escalão do governo federal. O sonho de Celso de Mello é afastar Bolsonaro do cargo que alcançou nas asas do voto popular. Quando outubro terminar, o ministro sairá de cena de vez. Seja qual for o desfecho do voo, o Pavão de Tatuí vai descobrir que está proibido de bater asas e pernas em paz até mesmo na cidade em que nasceu.
Revista Oeste