Sabe a história do pai de família que morre deixando dívidas para os filhos negociarem com agiotas? Com o Estado, não é muito diferente
Há princípios econômicos que, mesmo triviais e consagrados por usos e costumes milenares, são desprezados por muitos cidadãos, entre os quais economistas que padecem de um misterioso distúrbio crônico, o de marcar qualquer verdade incômoda, por mais elementar que seja, com o carimbo de “dogma”, “simplismo” e “velharia”, que precisa de rediscussão e refinamento. Tal patologia explica o surgimento, de tempos em tempos, de teorias relativistas rocambolescas, que se esforçam na musculação para transformar periquitos em pavões, aves mais afeitas ao exibicionismo de seus proponentes.
A pandemia trouxe de volta certos seres que já se podem avistar gargalhando como hienas, prevendo o fim do liberalismo econômico. O Brasil não pode mais perder tempo com essas ideias. Não podemos permitir que políticos em geral e economistas heterodoxos, hoje na oposição, mas que já contribuíram com mérito e louvor para afundar o país, transformem as despesas transitórias, que a União será obrigada a engolir, em orgia fiscal permanente. O verdadeiro “desenvolvimentismo” é dizer não a todos eles.
Uma das realidades que os amofina é a máxima de que governos devem ser sempre responsáveis quando gastam o chamado “dinheiro público”. Não são poucos os que creem ingenuamente que o Estado pode tudo, é capaz de transformar pedras em pães, seus recursos são inesgotáveis e, por conseguinte, não precisa seguir aquele conselho, trivial e prudente de nossos avós, de que não se deve gastar mais do que se ganha ou arrecada. Não se trata de teoria econômica sofisticada: é simples aritmética e bom senso, óbvia para quem tem um pingo de experiência de vida. O ato de negá-la é reprovável em qualquer pessoa, mas em economistas — sinceramente — é inaceitável.
O Estado está sujeito às mesmas restrições financeiras e morais de famílias e empresas
A insensatez do pai de família que passou anos gastando acima de sua renda e, no fim da vida, avisou aos filhos que lhes deixava um caminhão de dívidas cedo ou tarde levará a consequências que obrigarão os herdeiros a tomar providências severas, cortando despesas, tentando aumentar a renda e negociando com bancos e agiotas. Da mesma forma, a incúria do administrador daquela empresa que operou no “vermelho” durante vários exercícios acarretará problemas para ele ou para seus sucessores, como fuga de fornecedores, falta de crédito e risco de falência, a não ser que o gestor adote medidas drásticas para aumentar receitas, enxugar custos e negociar com credores.
Deveria ser óbvio — até para as lendárias girafas da Amazônia que povoam o imaginário canhoto — que as mesmas restrições se aplicam também ao governo. Mas, infelizmente, isso não acontece. Tanto que, sempre que alguém com juízo se atreve a fazer essa afirmativa, sofre ataques de críticos e “especialistas”, olhares rútilos de superioridade “científica” e que se lançam furiosamente sobre ele, certos de que podem transformar qualquer obviedade gritante em falsidade alarmante.
A rigor, em se tratando de medidas para enfrentar riscos de bancarrotas, só há duas diferenças entre o Estado, o pai e o empresário imprudentes, que deixam, respectivamente, o orçamento público, a família e a empresa em pandarecos financeiros. A primeira é que embora qualquer um deles disponha de três alternativas, não mutuamente exclusivas — buscar maior renda ou receita, cortar despesas e tomar empréstimos —, só o Estado tem uma quarta possibilidade, que é emitir dinheiro sem nenhum lastro. Se o chefe de família ou o empresário imprimirem uma única cédula de 2 reais, incorrerão em crime contra a fé pública, tipificado no artigo 289 do Código Penal e cuja punição prevista é multa e reclusão de três a doze anos.
Adam Smith sabia que o Estado também tem restrições orçamentárias e por isso fez questão de ditar para seu mordomo — que foi quem passou para o papel o extenso original de A Riqueza das Nações — a famosa frase: “Aquilo que é imprudente para os chefes de família e para os empresários não pode ser prudente para os homens do governo”. Enfim, o Estado está subordinado às mesmas restrições financeiras e morais de famílias e empresas, mas somente ele pode emitir moeda.
Gerações futuras serão obrigadas a pagar o ônus da insensatez na gestão fiscal
A segunda diferença diz respeito aos efeitos de longo prazo da imprudência: o indivíduo prejudicará a si próprio, sua família e seus descendentes; a empresa, a seus administradores, funcionários, fornecedores e consumidores; mas o Estado irresponsável que mantém déficits fiscais lesará todos os indivíduos e empresas do país. Não existe justificativa moral para que governos cronicamente endividados obriguem as gerações futuras a suportar o ônus de sua insensatez.
Mas, afinal, qual é o problema com os déficits fiscais? Desculpem-me dizer, mas, infelizmente, déficits precisam sempre ser financiados de alguma forma e todas elas produzem efeitos deletérios. Se a alternativa é aumentar impostos, o efeito principal é o desestímulo ao trabalho, à produção e ao consumo; se a opção for tomar empréstimos no setor privado, a consequência será o endividamento, que pressionará as taxas de juros para cima e bloqueará investimentos de longo prazo; e, se a escolha for despejar dinheiro na economia, cedo ou tarde a inflação dará todas as suas horrorosas caras. Em vista disso, qualquer das opções de financiamento do déficit causa perdas generalizadas inevitáveis, especialmente para os mais pobres.
As teorias que trombeteiam serem os déficits do Estado bons para todos embutem uma defesa pretensamente científica do comportamento da cigarra, comparativamente ao da formiga, algo moralmente indefensável, pois sugere que vícios individuais como o esbanjamento, quando considerados do ponto de vista coletivo, não são vícios, mas virtudes; e que qualidades individuais, tais como frugalidade, modéstia, parcimônia, boa administração dos bens e trabalho duro, quando consideradas na ótica social, não são qualidades, mas defeitos execráveis. Deturpações de natureza moral sempre assinaram o ponto na história do pensamento econômico, mas, a partir dos anos 30 do século passado, cresceram assustadoramente, a ponto de levar o professor James Buchanan (Nobel de Economia em 1986) a escrever: “Com Keynes nascia a era moderna de libertinagem fiscal, pública e privada”.
Em razão da pandemia, a conta já explodiu. Mas o desvio de rota tem de ser um coffee break
A pandemia e seus efeitos devastadores na saúde e na economia obrigaram o governo a uma pausa forçada na austeridade fiscal que vinha seguindo, com muito esforço e contra praticamente tudo e todos, e que já mostrava os primeiros resultados positivos. Do seu início até maio, o governo federal desembolsou perto de R$ 350 bilhões e estima-se que o impacto fiscal será no mínimo de R$ 400 bilhões até o final do ano; a arrecadação no primeiro quadrimestre recuou 7,5% sobre o mesmo período em 2019 e, em termos reais, em abril, ficou 29% abaixo do valor em abril de 2018, descendo para R$ 101,2 bilhões, o menor valor desde 2007; no início de maio, o governo estimou uma queda de 4,7% no PIB deste ano, que poderá chegar aos dois dígitos no final de dezembro; o déficit em 2020 poderá ultrapassar os 9% do PIB; e a dívida pública, que havia caído para menos de 76% do PIB em 2019, pode transpor os 90% neste ano.
Em resumo, a conta já explodiu e se o desvio de rota não for tratado pelo governo como um coffee break e voltarem os tempos de baderna fiscal permanente, se a agenda econômica liberal não for retomada com maior intensidade do que antes, poderemos categoricamente afirmar que nossa economia vai passar mais uma década patinando, tal como aconteceu dos anos 80 até 2018.
O que traz alguma esperança é a certeza de que a equipe econômica, a mais liberal de toda a nossa história republicana, está convicta desse perigo de retrocesso e da urgência de resgatar o caminho da prosperidade que o vírus capturou e os economistas heterodoxos — como alguns tucanos e os antediluvianos — querem manter em cativeiro.
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Ubiratan Jorge Iorio é doutor em Economia (EPGE/FGV), presidente do Conselho Acadêmico do Instituto Mises Brasil e professor associado (aposentado) da Uerj.
Revista Oeste