Digito estas linhas semanais de informação e opinião, na tarde de sexta-feira, 30, a poucas horas de ir ao ar o capítulo final da novela “Velho Chico”. Portanto, não importa, aqui e agora, o relato fiel do desfecho quanto aos últimos segredos e nuances do folhetim das 9h da TV Globo e o destino de todos os seus incríveis personagens. Isso caberá, nos próximos dias, às revistas e colunas especializadas. Neste caso, seguramente, ainda por um bom tempo.
O fundamental mesmo, -- às vésperas de milhões de brasileiros irem às urnas neste domingo, 2, para eleger prefeitos e vereadores em mais de 5 mil municípios, -- é que, no entorno das barrancas e das águas em geral mansas e exangues do rio da minha aldeia, (que podem se transformar, de repente, em perigosas e mortais armadilhas, a exemplo do que aconteceu na realidade trágica do afogamento do ator Domingos Montagner) se produziu mais um milagre na tenda chamada Brasil.
O fato relevante é: diante das águas, das terras, da gente, mas principalmente dos imensuráveis mistérios do Rio São Francisco, um País inteiro se redescobre, se surpreende e se emociona, em especial e raríssimo momento de contrição e unidade. E assim, ao pé dos capítulos derradeiros da novela de Benedito Ruy Barbosa, faz a sua catarse: emocional, política, social, dramatúrgica - e se reflete no grande espelho de suas mazelas, desgraças , grandiosidades e misérias humanas.
É assim, em geral, nos roteiros de Barbosa, mas principalmente na dramaturgia das novelas dirigidas por Luiz Fernando Carvalho. Ninguém é totalmente bom, ou inteiramente mau. São seres humanos, vivendo suas contradições, dúvidas, dualidades, em permanentes recuos e avanços.
Isso abrange até as figuras mais emblemáticas deste folhetim, em seus derradeiros capítulos: o coronel Saruê (Antonio Fagundes), a matriarca Dona Encarnação (Selma Egrei), Santo dos Anjos (Domingos Montagner) e o deputado Carlos Eduardo ( Marcelo Serrado), como sintetizaram Fagundes e Serrado, no programa “Encontro com Fátima Bernardes” na manhã desta sexta-feira, 30, sobre o tema “Saudade”. Magnífica homenagem póstuma a Montagner e ao seu elenco formidável de realizadores, técnicos e artistas.
Pode parecer exagero. Mas reproduzo aqui (por necessárias) palavras do jornalista Sebastião Nery, na apresentação do livro “Rompendo o Cerco”, sobre Ulysses Guimarães: “Ninguém me contou. Eu estava lá. Eu vi”. Sim, eu vim das barrancas do rio, e acompanhei o desenrolar do folhetim da Globo do começo ao fim. Cantando, sorrindo, me emocionando e chorando, muitas vezes, (feito menino “buxudo” do meu sertão), confesso agora, a quem interessar possa.
Para que não digam que sou um arrivista de “Velho Chico” – tenho visto muita gente ser tratada assim nas redes sociais, nas últimas semanas deste tempo temerário de Fla x Flu político e ideológico no Brasil - , reproduzo a seguir, trechos do artigo que escrevi na semana do início da novela, publicado em 19 de março, no Blog do Noblat, na Tribuna da Bahia e no site blog que edito em Salvador.
“As imagens, diálogos, desempenhos e direção das cenas de abertura de “Velho Chico”, somados ao desenrolar dos primeiros capítulos do novo folhetim das 9h, da TV Globo, apontam para outro marco da teledramaturgia nacional, no meio da crise política, moral e econômica, e da geleia geral que os jornais do Brasil e do mundo anunciam. Não poderiam ser mais belos, ardentes e emblemáticos, em sua composição cênica e conteúdo de textos e contextos humanos, amorosos, religiosos e sociais. Esplêndido painel, também, de desempenhos artísticos, a começar pela breve mas gloriosa passagem de Tarcísio Meira (o coronel Saruê da primeira parte do folhetim)”.
“Pelo empolgante cartão de visita, a nova história levada à telinha, por Benedito Ruy Barbosa, tem um atrativo a mais: apresenta-se como oportunidade – cada vez mais rara nestes dias de tumultos, diálogos rasteiros e escatológicos de governantes, ministros, parlamentares, ex-primeira dama, que até então parecia um túmulo de silencio e recato, entre outros -, para confrontar e refletir sobre “dois brasis” que há décadas se encaram sem se ver mutuamente”.
Não retiro uma vírgula do texto. Menos ainda depois dos capítulos que se seguiram à trágica morte de Montagner, tragado pela correnteza (e pelos segredos e mistérios das águas do rio de minha aldeia), em Canindé do São Francisco, em Sergipe: à beira da profunda represa da usina de Xingó, nas proximidades dos canyons deslumbrantes que levam a Paulo Afonso, antigo distrito de Glória, onde passei um tempo maravilhoso da infância.
Empolgantes – de fazer história na televisão brasileira – as cenas do começo da redenção do coronel Saruê, em sua batalha íntima de Dom Quixote da foz do São Francisco, em Alagoas, em busca do abraço do filho desaparecido. Desespero e grandeza – cênica e pessoal – do todo poderoso dono de terra e gente em Grotas, ao lado do jagunço Ciço, encarnado por Marco Palmeira. Batalha contra moinhos de ventos eletrônicos, de fazer inveja ao grande herói de Cervantes, na literatura espanhola. O despir das máscaras, a começar pela cabeleira postiça. Até submergir no mar da foz, para reaparecer depois em Salvador, no reencontro em busca do perdão de Iolanda, amor da juventude de Afrânio, antes de se formar advogado nos anos 60, e virar Saruê.
E fazer a delação premiada na “Operação Gaiola dos Encantados”, que assinala o ponto culminante dos atos redentores do coronel do interior da Bahia. E marca o começo do tragicômico fim do deputado e arremedo de coronel Carlos Eduardo, corrupto e corruptor, na desesperada tentativa de fuga com a burra cheia de dinheiro. Um final tão ansiado quanto o casamento de Santo e Teresa, na mais que merecida homenagem a Domingos Montagner.
Viva “Velho Chico” e que os bons exemplos frutifiquem. Todos às urnas deste domingo. Com consciência e decisão.
Trecho do rio São Francisco entre os municípios de Ponto Chique e Pirapora (Foto: Wikipédia)